por Nuno Ramos de Almeida
As histórias da clandestinidade de Álvaro Cunhal estão a ser publicadas nos EUA. Os editores, que acabam de publicar A Estrela de Seis Pontas, sublinham a importância literária desta obra e a sua capacidade de mostrar a humanidade em tempos terríveis.
Em ano de comemorações do centenário do Partido Comunista Português, foi recentemente traduzido para inglês e publicado nos EUA o romance Estrela de Seis Pontas, de Manuel Tiago, pseudónimo literário de Álvaro Cunhal. É o segundo romance, do autor, publicado numa série que começou com Cinco Dias, Cinco Noites, continuará com os restantes livros, e que pretende encerrar com a publicação de Até Amanhã, Camaradas.
O responsável dessa autêntica odisseia é Eric A. Gordon, editor da secção de cultura do site informativo People's World, herdeiro do mítico jornal comunista publicado em Nova Iorque, a partir de 1924, The Daily Worker. Um jornal em que colaboraram nomes relevantes da cultura norte-americana, como o músico Woody Guthrie, e que no seu auge atingiu uma circulação de mais de 35 mil exemplares por dia.
A publicação de Cinco Dias, Cinco Noites foi um sucesso, segundo o seu tradutor, tanto a nível de críticas, como de vendas. «O primeiro livro saiu bastante bem em termos de vendas. Durante várias semanas, a International Publishers (IP) tinha-o na sua lista dos três livros mais vendidos. As críticas foram boas e recebi muitos comentários favoráveis de leitores por parte de amigos. Publicamos primeiro Cinco Dias, Cinco Noites, porque os editores sabiam que tinha sido um dos títulos mais populares de Manuel Tiago e que deveria encontrar um público igualmente receptivo aqui nos EUA», informa Gordon numa entrevista ao People's World.
O tradutor considera que o novo romance agora traduzido, A Estrela de Seis Pontas, é «uma das obras de ficção mais memoráveis da literatura mundial sobre a prisão. Faz uma composição de géneros bastante brilhante, aqui se misturam romance, memórias e uma antologia de histórias, com pequenos retratos marcantes de personagens que se poderiam encontrar numa prisão portuguesa de alta segurança nos tempos do fascismo, e as suas interacções, tanto entre si, como com o mundo exterior».
Para o tradutor, a grande riqueza do livro é mostrar a situação prisional durante a ditadura, tendo a capacidade de revelar a vida das pessoas que compõem uma cadeia e no meio desse ambiente terrível, mostrar que resiste a humanidade. «O principal vilão da história é, evidentemente, o próprio sistema fascista. No livro, há uma espécie de sensibilidade negra [noir, em francês no original, referência ao romance negro] que não hesita em revelar o tédio metálico e ruidoso da vida prisional inútil, nem em contar alguns contos verdadeiramente horríveis, mesmo voyeurísticos, do ´verdadeiro crime´. Mas estamos perante um escritor comunista. Quase por definição, não pode ser considerado alguém que se entrega ao desespero. Através de tudo isto, vemos carinho, amizade, sacrifício, compaixão, inteligência, amor, resistência política, uma curiosidade apaixonada sobre o mundo, mesmo uma espécie de bondade, e todas as outras qualidades que tornam os humanos humanos. A prisão em si não consegue anular a humanidade de uma pessoa. Esta pode ser por si só a mensagem mais importante do livro.»
Gordon considera que apesar de na vida de Álvaro Cunhal a escrita de ficção ter ocupado uma parte muito pequena numa existência muito ocupada, e apesar de parte dos seus romances terem sido escritos nas difíceis condições da prisão, esses livros mostram uma obra de «um escritor importante. Manuel Tiago é desigual na sua obra e por vezes não se concentra em desenvolver plenamente os seus personagens. Mas em vários livros, como Cinco Dias, Cinco Noites, mostra uma grande mestria nesse campo». O tradutor sublinha que ele ultrapassa muitas vezes o cânone das fórmulas do realismo socialista, com líderes proletários justos e heróicos, para mergulhar na riqueza e diversidade da humanidade. «Na maioria dos casos, mostra um profundo conhecimento do carácter humano, com todas as nossas fraquezas» e capacidades de nos transcendermos.
Para Michael Berkowitz, que assina uma recensão no People's World, esta capacidade de mostrar o humano para além da aparência está muito bem espelhada em Cinco Dias, Cinco Noites. «Cunhal é um narrador astuto das suas histórias. Se André é um jovem impaciente, será ele talvez demasiado ingénuo e impetuoso para o seu próprio bem? E se Lambaça é tão rude e imoral, por que é que se dá ao trabalho de levar este jovem rebelde para fora da fronteira com tanto risco?»
«O livro esforça-se por detalhar aspectos das vidas modestas ao longo da fronteira. Os contrabandistas, prostitutas vulneráveis, pastores e aldeões constituem grupos de pessoas reprimidas no Portugal fascista. Cunhal não coloca propositadamente as suas personagens num lugar ou tempo demasiado específico. Mas a fronteira representa claramente a esperança e a possibilidade de mudança», diz Berkowitz.
É esta capacidade de retratar as pessoas para além das aparências, e fazer o humano transcender que realça outra crítica na conhecida publicação socialista norte-americana Monthly Review sobre a obra. «Apesar das condições difíceis em que o livro foi escrito por Álvaro Cunhal, neste período particular da história portuguesa», Cinco Dias, Cinco Noites surpreende porque «é desprovido do discurso político pomposo por vezes encontrado na ficção política, a novela consegue captar as complexidades, solidão e bravura das pessoas comuns, e destaca como encontramos formas de olhar uns pelos outros apesar das barreiras erguidas pela sociedade».
Texto publicado no boletim da URAP nº164 (Jan-Mar 2021)