A União de Resistentes Antifascista Portugueses (URAP) apoia e assina a Petição à Assembleia da República Portuguesa denominada “Pelo Direito à Memória e ao Ressarcimento – Cambedo da Raia e o pós-guerra civil espanhola – Os trágicos acontecimentos de Dezembro de 1946”, cujo primeiro subscritor é a Associação Desportiva, Cultural e Recreativa de Cambedo da Raia.
A Petição, aberta a todos, é apresentada por uma Comissão Promotora que desde já engloba para além da Associações Desportiva, Cultural e Recreativa de Cambedo da Raia e de Vilarelho da Raia, a Junta de Freguesia de Vilarelho da Raia, membros da comunidade cambedense e seus familiares, investigadores/historiadores e a Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM).
Quando Portugal vai comemorar, em Abril de 2024, 50 anos de Democracia em torno dos eixos Memória e Futuro, a URAP apela a todos os democratas e antifascistas que assinem a Petição que abaixo reproduzimos, podendo fazê-lo na sede nacional ou junto dos núcleos da URAP espalhados pelo país.
Os subscritores solicitam à Assembleia da República que “aprove uma resolução com um reconhecimento público de homenagem à comunidade cambedense, em especial ao seu direito à memória dos que tendo sido testemunhas da tragédia, já faleceram sem nunca terem sentido qualquer atenção do Estado Democrático”.
Texto completo da Petição à Assembleia da República:
CAMBEDO DA RAIA E O PÓS-GUERRA CIVIL ESPANHOLA
OS TRÁGICOS ACONTECIMENTOS DE DEZEMBRO DE 1946
PELO DIREITO À MEMÓRIA E AO RESSARCIMENTO
PETIÇÃO
Em abril de 2024 comemoram-se os 50 anos da Democracia em Portugal em torno dos eixos Memória e Futuro e em consonância com os “princípios e valores subjacentes ao Programa do MFA, que pôs fim à ditadura: paz, liberdade, democracia e progresso”.
Nesse sentido, no eixo da Memória, essa deve ser também a oportunidade de os órgãos dirigentes do Estado Democrático darem pública prova de reconhecimento e respeito pelo longo e invisível sofrimento infligido pelo regime fascista a pessoas, grupos e comunidades raianas durante e após a guerra civil espanhola que opôs republicanos e franquistas.
Contra o regime democrático espanhol, entre 1936 e 1939, e com a gradual conquista do território por parte das forças franquistas e dos seus aliados fascistas italianos e alemães, em cada aldeia e cada cidade ocupada, cresceram as denúncias, as perseguições, as torturas e os fuzilamentos sumários de muitos daqueles que tinham apoiado a República. Na Galiza, nas Astúrias e ao longo da fronteira luso-espanhola surgiram milhares de refugiados que, fugindo à perseguição e morte, procuravam abrigo e apoio do lado de cá da raia. Individualmente ou em pequenos grupos, os fuxidos foram sobrevivendo ao longo do tempo em lugares e aldeias portuguesas, desde Castro Laboreiro até Barrancos.
Esta petição tem como objeto a comunidade-símbolo de Cambedo da Raia, na freguesia de Vilarelho da Raia, em Chaves, que em dezembro de 1946 foi alvo de uma operação militar brutal e desproporcionada de caça a fuxidos que lá se encontravam, levada a cabo pelas ditaduras fascistas ibéricas, que envolveu mais de 1.000 agentes de ambos os países.
De facto, na madrugada de 20 para 21 de dezembro, forças conjuntas envolvendo a GNR, o Exército, a PVDE e a Guardia Civil, cercaram e bombardearam o Cambedo com morteiros. Ao mesmo tempo, noutras aldeias de Chaves (Nantes, Castanheira, Sanjurge, Couto), foram presos outros presumidos implicados no apoio aos guerrilheiros rojos.
A operação militar visava capturar, vivos ou mortos, os guerrilheiros anti-franquistas acolhidos pela comunidade do Cambedo, com quem mantinham laços de parentesco, de amizade e de trabalho. No discurso oficial das duas ditaduras, a operação prometia acabar com as actividades dos bandoleiros que atormentavam a região raiana transmontana.
O resultado do cerco a Cambedo da Raia foi trágico: para além da destruição de várias casas da aldeia, um guerrilheiro desapareceu, outro foi morto, o terceiro suicidou-se e o quarto foi preso; do lado das forças sitiantes, vítimas da sua própria violência repressiva, dois guardas, um da GNR e outro da Guarda Fiscal, morreram, um terceiro foi ferido bem como um agente da PVDE; na comunidade local também houve feridos e, através do processo da PVDE nº 917/46, 18 moradores foram presos. Nas aldeias referidas, o mesmo processo ultrapassou a meia centena de arguidos.
Para Paula Godinho, cientista social que mais profundamente estudou o caso, houve várias mortes, vidas destroçadas, pequenas economias agrícolas devastadas, num lastro de sofrimento que permanece até hoje. Além de tudo, a aldeia sofreu o opróbrio que os fascismos ibéricos fizeram cair sobre quem soube acolher os que fugiam do horror da guerra e os que combatiam o franquismo. (Godinho et alli, 2021).
No Blog Cidade de Chaves - Cambedo da Raia - dia 1 - A razão de ser, acessível através de https://chaves.blogs.sapo.pt/231189.html, o autor Fernando Ribeiro põe o dedo na ferida:
Mexer numa verdade que se quer esquecida e que, quase sempre, foi mal entendida e interpretada e em que, poucas vezes, se olhou ao lado humano das gentes do Cambedo, às injustiças cometidas sobre o seu povo, ao castigo, à vergonha que durante anos foram obrigados a passar e ainda hoje por lá se sente, agora com um pouco de orgulho (por parte de alguns, poucos), mas ainda muita revolta, desconfianças e até medos de arcar com as responsabilidades dos acontecimentos do Cambedo e a morte da guerrilha antifranquista em terras de Portugal.
Em 1996, a Associación Amigos da República, de Ourense (Galiza) denunciou publicamente a tragédia e colocou uma lápide evocativa no local onde a raia dividia a aldeia (a capela). Em 2004, António Loja Neves e José Alves Pereira, realizadores, apresentaram em Ourense a primeira versão desse eloquente filme testemunhal intitulado significativamente “O Silêncio”.
Por isso, esta petição tem como objectivo contribuir para o resgate da memória daqueles que, direta e indirectamente, sofreram a vergonha dos acontecimentos de 1946 e foram vítimas das narrativas, mentirosas e de ocultação da verdade, construídas pelas ditaduras peninsulares. Pretende-se lutar pelo direito à verdade, à memória e ao ressarcimento ético da pequena comunidade que, corajosamente, atuou contra as ordens de Salazar.
Para que tal resgate aconteça, importa hoje afirmar a responsabilidade que o Estado Democrático Português deve assumir não só no reconhecimento da longa opressão imposta pelo silêncio, isolamento e desconfiança sofridos pela comunidade raiana do Cambedo, mas também das dívidas morais, éticas e de cidadania de que aquela comunidade é credora.
Nesta conformidade, no contexto geral da comemoração dos 50 anos da Revolução de Abril, os cidadãos peticionários apelam ao Presidente da Assembleia da República no sentido de que este órgão de soberania:
Aprove uma resolução com um reconhecimento público de homenagem à comunidade cambedense, em especial ao seu direito à memória dos que tendo sido testemunhas da tragédia, já faleceram sem nunca terem sentido qualquer atenção do Estado Democrático.
Esta Petição é fundamentada na Proposta que lhe está anexa e é apresentada pela Comissão Promotora (Associações Desportiva, Cultural e Recreativa de Cambedo da Raia e de Vilarelho da Raia, Junta de Freguesia de Vilarelho da Raia, membros da comunidade cambedense e seus familiares, investigadores/historiadores e Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM) e é aberta a todos, sendo o primeiro subscritor a Associação Desportiva, Cultural e Recreativa de Cambedo da Raia, com o NIPC 504 650 157, morada em Cambedo da Raia, freguesia de Vilarelho da Raia, 5400-811 Chaves
28 Abril 2023