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Entrevista publicada na edição de Abril do Jornal A Voz do Operário
por Ana Goulart
"Branqueia-se o fascismo porque há políticas fascistas a serem recuperadas"
A ditadura fascista foi "mais hipócrita" que outras. Esta é a convicção de Aurélio Santos, resistente anti-fascista que considera ainda que o branqueamento do fascismo se prende com o facto de estarem a "ser recuperadas" políticas do Estado Novo.
Assiste-se hoje a uma tentativa de branquear a ditadura fascista. Em seu entender a que é que isso se deve?
Porque há muitas políticas do fascismo que, de certo modo, estão a ser recuperadas. O fascismo não o foi só, como às vezes se pretende fazer crer, em métodos violentos, brutais, criminosos, com prisões, espacamentos e assassinatos. Isso eram métodos necessários para a aplicação de uma determinada política. Não se pode separar os métodos seguidos pelo fascismo da política seguida pelo fascismo, principalmente, num País como Portugal com um baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas em que não se conseguia responder às necessidades da população e foi através da concentração da riqueza, mas mantendo um baixo nível de desenvolvimento, que o fascismo se implantou e desenvolveu. E isso exigiu os tais métodos violentos. Alguns desses processos políticos, nomeadamente nas formas de exploração das classes trabalhadoras, das massas populares, estão a ser reintroduzidos, como aliás, se verificou um pouco por todo o mundo. A procura por parte dos sectores económicos dominantes de recuperação das posições que tiveram de ceder durante a segunda metade do século XX em face do desenvolvimento das lutas populares e dos movimentos políticos e designadamente em contraposição com os países do sistema socialista. Esse processo de recuperação, que agora encontra também uma certa confirmação na actual crise económica, leva a que alguns dos processos da organização fascista sejam recuperados. Veja-se, por exemplo, o Código do Trabalho que recupera algumas das condições de laboração e outras que até no fascismo já tinham sido vencidas pelos trabalhadores portugueses. A contratação colectiva foi conquistada ainda nos anos 40, durante a guerra [II Guerra Mundial]. O novo Código laboral pretende, entre outras coisas, destruir isso. Com isto tenta-se também branquear alguns dos métodos fascistas, algumas das figuras do fascismo, como o museu de Salazar... No último ano e meio, dois anos, saíram mais de vinte ou trinta livros sobre personalidades fascistas. Claro que isso também é História. Ninguém está contra o facto de se conhecer a História, mas conhecê-la como ela foi e não branqueando os aspectos negativos.
Esse é um aspecto curioso. Há de facto a história da personalidade, do indivíduo, mas não há a História que analise o fascismo nos seus aspectos políticos, económicos, sociais e até culturais. Porquê?
Porque não há promoção disso. É necessária uma investigação séria e a orientação dominante não vai nesse sentido. Mesmo quem procura investigar o fascismo nas suas características mais negativas pode ter dificuldades na sua carreira académica. Isto também afasta as pessoas mais capazes da investigação desse período. Ainda tem muito de político, da política actual, não é simplesmente História. È a confrontação com as actuais linhas e orientações políticas. Por exemplo, porque é que nas escolas quase não se fala do 25 de Abril e do período pós-25 de Abril? É raro o curso do secundário em que o 25 de Abril é devidamente tratado. Passa-se por cima exactamente porque ainda é política.
Também há quem diga que o fascismo português foi diferente do fascismo alemão ou italiano. Ou seja, o "nosso" fascismo teria sido mais brando. Concorda?
Foi mais hipócrita, sem dúvida. Costumo dizer que a versão salazarista do fascismo foi mais hipócrita. Naturalmente que todos os fascismo foram diferentes. O de Hitler não foi igual ao de Mussollini, o de Franco foi diferente do de Horthy, na Hungria. Todos eles tiveram muito a ver com a realidade própria de cada país. Em Portugal, o fascismo nunca teve o apoio popular como sucedeu na Alemanha e na própria Itália. Mas como aqui nunca teve apoio popular, as suas expressões e manifestações também foram diferentes. O fascismo português duraou muito tempo, quase 50 anos, e teve várias fases. Teve uma fase brutal em que se afirmou mais abertamente como fascista. Salazer implantou todos os símbolos fascistas em Portugal como a saudação de braço levantado e copiou em grande medida a legislação de Mussollini, dizendo inclusive que o século XX seria o século do fascismo. Mas isto foi até ao fim da guerra [II Guerra Mundial]. Quando esta acabou Salazar ocultou os sinais exteriores do fascismo. As saudações, as fardas da Legião Portuguesa e da Mocidade Portuguesa alteraram-se. Mas isso eram os sinais exteriores, a política fascista continuou a mesma; a repressão, a privação das liberdades, a falsificação dos resultados eleitorais, as chamads mascaradas eleitoriais, enfim, tudo isso caracterizou a segunda fase do fascismo salazarista.
Como descreve a repressão salazarista?
A repressão salazarista procurou sempre ser o mais selectiva possível. Houve momentos em que foi de massas, houve alturas, durante os anos da guerra, em que o Campo Pequeno foi cheio de grevistas, mas procurou ser sempre selectiva sobretudo destruindo as possibilidades de organização e regular funcionamento da oposição.
Dirigia-se sobretudo contra os comunistas?
Comunistas e outros anti-fascistas. Humberto Delgado não era comunista e foi assassinado. No Tarrafal estiveram também anarquistas, anarco-sindicalistas. Porém, como o Partido Comunista foi o que teve maior continuidade e era organizativamente a grande força da oposição, teve sempre um papel destacado, mesmo nos grandes momentos de unidade anti-fascista como o MUNAF [Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista], a campanha de Norton de Matos, de Humbarto Delgado. O Partido Comunista foi elemento essencial para a mobilização de massas pelo prestígio que tinha e pela forma organizada com que trabalhava e se enquandrava no País. Aliás, o anti-comunismo foi o cimento ideológico de todos os facismos e também do fascismo salazarista. Era na base do anti-comunismo que o Salazar proclamava a necessidade da sua política repressiva e da sua política em geral. Porém, o fascismo salazarista teve uma terceira fase que é a fase da Guerra Colonial. Nesta fase, a face fascista do regime de Salazar, e depois de Caetano, voltou ao de cima. A prática seguida pelo regime fascista na Guerra Colonial foi a prática dos exércitos hitlerianos nos países ocupados. Extermínio em massa, as formas mais brutais de repressão e de violência, aldeias queimadas, reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal. Tudo isto está ligado ao reaparecer num momento de crise das formas mais brutais do fascismo.
Disse que o fascismo português não teve o apoio das massas populares, mas vivia-se também um regime de censura. Como é que a mensagem da oposição chegava às pessoas?
Havia a imprensa clandestina. Um dos méritos do Partido Comunista foi o de ter mantido um aparelho de imprensa clandestina que, desde 1931, com o aparecimento do "Avante!" dava regularmente informação. Claro que limitada, as tiragens eram pequenas, as formas de distribuição eram muito difíceis, era perigoso ser apanhado com o "Avante!" porque era motivo para prisão. A partir de 1962, com a criação da Rádio Portugal Livre, a informação ampliou-se. A Rádio foi um factor importante para as mobilizações do 1.º de Maio de 1962 que abriram uma nova época na luta anti-fascista, a época das grandes manifestações de massas fora de períodos eleitorais que deram a capacidade ao povo português de, nos momentos políticos mais candentes, sair para a rua e isso no 25 de Abril foi fundamental. O 25 de Abril não seria a grande Revolução que foi se não tivesse havido a iniciativa popular de vir para a rua ao lado dos militares. Não foi apenas a força militar que derrubou o governo de Caetano. Foi a força militar e milhares de pessoas nas ruas ao lado dos militares.
Viveu na clandestinidade e foi funcionário do PCP. Como é que se organizava a resistência ao fascismo?
A clandestinidade existia para os quadros políticos que estavam mais sujeitos à repressão, mas a acção do Partido Cominista era uma acção o mais aberta possível com vista à mobilização das massas. Tinha de haver uma interligação entre os quadros legais e os quadros clandestinos que permitisse a capacidade de estar junto dos sectores da população em que havia razões de luta ou havia necessidade dessa luta. Nas empresas, nas escolas, nas universidades, aí os comunistas na "legalidade" actuavam como organizadores das grandes organizações de massa. O aparelho clandestino unificava e dava uma perspectiva global a todas essas acções e garantia-lhes a continuidade e a coerência. Era esta interligação que permitia organizar a resistência.
Na clandestinidade vivia-se com medo ou com cuidado?
Com cuidado. O medo é um fenómeno natural. As pessoas sabiam que estavam em perigo, inclusivamente de vida, por isso tinham de ter cuidados. Ao longo dos anos foram sendo elaborados vários processos de defesa. O Partido Comunista também aprendeu, principalmente nos anos 30 quando a falta de medidas que chamávamos de conspirativas de defesa, levavam as direcções do partido a serem sucessivamente presas. A partir da reorganização [do PCP] de 1941/42 criou-se uma metodologia de defesa da acção repressiva que permitiu a conitnuidade da acção, da publicação da imprensa clandestina e a continuidade de organização, bem como, a estabilidade da direcção que permitiu o desenvolvimento do partido e a sua acção de massas.
Já referiu a "mascarada eleitoral". Mesmo sabendo que era uma mascarada política, a oposição participava...
Isso também foi uma criação do movimento anti-fascista, original e interessante, no nosso País. Nós sabíamos que era uma mascarada, mas, de certo modo, também era uma conquista da oposição que tinha imposto que se fizesse a mascarada. Então era aproveitar esta o mais possível para encostar o fascismo à parede, denunciá-lo e fazer grandes campanhas de massas. Transformar as mascaradas em grandes campanhas políticas de massas. Usavam-se as manobras fascistas para as virar em grandes operações contra o fascismo. Fez-se o mesmo com os sindicatos fascistas quando se viu que era importante ir lutar dentro dos próprios sindicatos. A partir dos anos de 1940, começou a fazer-se a utilização dos sindicatos fascistas para fazer a luta anti-fascista. Depois viu-se também a necessidade de aproveitar a demagogia liberalizante de Marcelo Caetano - que foi no sentido de procurar diminuir a confrontação entre o fascismo e os interesses das massas populares - para aproveitar esse "enfraquecimento" que teve o fascismo para fazer avançar a luta pela democracia. Por exemplo, o Congresso da Oposição Democrática realizado em Aveiro, em Abril de 1973, em que foi definido um programa político da oposição democrática, programa esse que, em grande medida, o Movimento das Forças Armadas aproveitou. Há aqui esta capacidade do movimento democrático português de aproveitar também as cedências que o fascismo ia tendo de fazer. Um outro aspecto fundamental era uma política unitária. Não era uma ou outra força política - mesmo o PCP que tinha uma força organizada ao nível nacional não era suficiente, nem correspondia aos interesses que motivavam grande parte das pessoas - que se apresentava como única a lutar contra o fascismo. Procurava-se que fosse a unidade das forças democráticas, dos democratas, dos que se opunham à ditadura fascista. Daí a criação do MUNAF, do Movimento de Unidade Democrática (MUD), da Frente Patriótica de Libertação Nacional, das CDE's (Comissões Democráticas Eleitorais). Mesmo no 25 de Abril essa unidade se verificou. A aliança Povo-MFA foi o culminar desta unidade anti-fascista em sectores muito diferenciados.
Como se preserva e transmite às novas gerações a memória do que foi o fascismo em Portugal?
Por um lado, não deixando esquecer os acontecimentos e os factos fundamentais que foram a espinha dorsal da luta anti-fascista. Por outro lado, não deixando esquecer o que significou a política fascista, o que significou de atraso, de prejuízo, de sofrimento para o povo português. A juventude não viveu aquele período, não viveu o matraquear da propaganda fascista na Mocidade Portuguesa, nas escolas, nas universidades. Não viveu aquela forma brutal de impor a visão fascista do mundo e da História. É criminoso que hoje os jovens saiam da escola sem terem uma ideia do que representou de ruptura com esse passado o 25 de Abril e a democracia em Portugal. Há um trabalho a fazer junto das escolas, junto dos jovens. Este é um aspecto a URAP tem tido em conta porque a URAP não é apenas uma organização de sobreviventes da ditadura fascista, sobreviventes dos lutadores contra a ditadura fascista, é também uma organização de formação e de educação das novas gerações para a democracia e para a liberdade.