por Rui Namorado Rosa
O conhecimento científico tornou-se central na compreensão do mundo natural e espiritual contemporâneo, e na organização e funcionamento das sociedades modernas. O conhecimento científico tornou-se parte integrante da educação e do funcionamento das sociedades contemporâneas.
Num mundo dividido entre nações e entre classes sociais, o conhecimento científico e técnico é um bem universal cujo acesso é partilhado de modo desequilibrado ou até iníquo entre países e mesmo dentro de cada país. Conhecimento é poder, exercido para o bem comum ou para a fruição egoísta, ou ainda para extremar a exploração ou até a agressão aquém ou além fronteiras.
A situação de pandemia que abala o mundo coloca no centro da nossa atenção a vulnerabilidade da espécie humana ao contexto natural e antrópico que habita. Existem ameaças que surgem independentemente da vontade e acção humana; mas também ameaças cujos danos podem ser agravados ou, pelo contrário, atenuados ou até evitados mediante adequada organização e intervenção humana; e ainda ameaças que emergem exclusivamente em resultado da própria acção humana.
Como podem ser evitadas ou mitigadas (nas causas e nos efeitos) todas essas ameaças? É aqui que o conhecimento científico tem um papel insubstituível a ocupar. Os seres e fenómenos que ocorrem no mundo físico e social têm de ser estudados para que saibamos lidar com eles e interferir positivamente no curso do seu desenvolvimento. Quanto às ameaças que são infligidas sobre o próprio homem, as armas de destruição maciça constituem um caso limite; a que se adicionam os conflitos bélicos e económicos entre estados, etnias e classes sociais; reflectindo e reproduzindo assimetrias persistentes na organização e partilha de meios de vida e subsistência digna e saudável em todo o mundo.
A pandemia de COVID-19
Apesar dos programas oportunamente formulados pela Organização Mundial de Saúde para promover a solidariedade internacional e enfrentar a avassaladora COVID-19, visando concretamente o fornecimento de dois mil milhões de vacinas até ao final de 2021, a pandemia subsiste e alastra sem que a produção e aplicação da vacina acompanhe as necessidades e as metas preconizadas pela OMS.
Era esse o objectivo do programa Covax, um mecanismo de aquisição conjunta que garantiria acesso equitativo às vacinas para todas os 190 países participantes. Porém, os contratos já firmados com as empresas Pfizer, BioNTech, AstraZeneca tardam a ser cumpridos, pelo que o programa Covax avança lentamente, forçando a OMS a reformular a sua calendarização até para além de 2022. Enquanto contratos com empresas fora do espaço atlântico tardam a ser firmados. Quem pretende tirar partido?
Por outro lado, o mecanismo Covid-19 Technology Access Pool, visando a partilha internacional da propriedade intelectual e meios especializados necessários à produção de vacinas em grande escala e abrangendo os países em desenvolvimento, enfrenta enormes obstáculos. A partilha internacional da propriedade intelectual pode ser acionada através de licenças compulsórias, um conceito incorporado nas normas internacionais, por via de uma emenda à Convenção para a Protecção da Propriedade Industrial, consagrada na Declaração de Doha 2001, graças à mobilização dos países então mais atingidos pela epidemia de HIV. O Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS) prevê agora, no Artigo 31+, flexibilidade no que respeita à atribuição de licenças compulsórias em caso de «emergências nacionais ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em caso de uso público para fins não comerciais (…) sem a autorização do titular dos direitos».
O licenciamento compulsório de patentes afronta privilégios das potências económicas onde estão sedeadas as empresas que fornecem as vacinas com melhor desempenho. No caso vertente, que nações terão determinação e força para as enfrentar? Os EUA não tiveram escrúpulos em ameaçar com licenciamento compulsório para a produção do medicamento contra o antraz, cuja patente pertencia à farmacêutica alemã Bayer, para levar esta farmacêutica a aceitar baixar o seu preço. O mesmo país que, pelo contrário, elaborou uma «lista negra» de países que não respeitam o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual, na qual inclui a Índia, que produz versões genéricas de medicamentos ainda sob patente, a China e o Canadá (este só temporariamente).
As vacinas são um bem público cujo acesso deve ser universal. Não só por convicção moral, mas porque as doenças infeciosas (como os processos naturais em geral) não se confinam por fronteiras.
Subsídios públicos, lucros privados
As multinacionais farmacêuticas foram subsidiadas pela UE, estados-membros e Comissão Europeia, que aplicaram mais de 2 milhares de milhões de euros em investigação e desenvolvimento e depois produção das vacinas, assim protegendo essas empresas de incorrerem em qualquer risco. E sem que estas abrissem mão da propriedade das patentes, negociando ferozmente os preços e restringindo as doações ou revenda para países em desenvolvimento.
Com as empresas farmacêuticas retendo as patentes de que são titulares, os mecanismos propostos pela OMS não atingem o alcance proposto. Segundo a Oxfam, para 13% da população mundial residente em países mais ricos, foram encomendadas 51% das doses contratadas. No seio da própria UE, ainda que a Comissão Europeia tenha assumido um mecanismo de aquisição conjunta de vacinas, a distribuição de lotes também não é proporcional às populações dos vários países; e alguns países, ou por mais influentes ou por injustiçados, apesar de serem parte do mecanismo de aquisição conjunta de vacinas, celebram acordos privados para adquirir lotes adicionais.
As empresas farmacêuticas têm-se apoiado no progresso realizado pela investigação em biotecnologia e genómica conduzida em laboratórios do estado e financiamentos públicos (universidades, start-ups), evitando incorrer em riscos, mas capturando os direitos de propriedade intelectual para elas próprias. Por outro lado, contam com o assegurado consumo dos sistemas de saúde que garantem um vasto mercado farmacêutico onde os países competem. Uma situação pandémica é então uma oportunidade excelente para as multinacionais forçarem altos preços para mais elevados lucros.
A situação de catástrofe pandémica é para o capital monopolista uma grande oportunidade de negócio. Um quadro em que as transnacionais farmacêuticas são acolhidas e subsidiadas pelos estados ou exploram através de contratos leoninos para o desenvolvimento de vacinas, que são vendidas antecipadamente a preços sigilosos, enquanto os sistemas de saúde aguardam para combater a emergência sanitária.
Rui Namorado Rosa
Professor universitário jubilado
Ex-vice-reitor da Universidade de Évora
Texto publicado no boletim da URAP nº165 (Abr-Jun 2021)