por Luís Farinha, historiador
Os diferentes usos que os indivíduos e grupos fazem do passado são indiciadores da coexistência de memórias concorrentes, alvo de disputas e de conflitos, como de um campo político e cultural em constante reconstrução se tratasse. Nesse sentido, a consensualização da memória, mais do que um combate pelo futuro é antes uma espécie de pacificação sobre um tempo infrutífero e morto.
A memória do «5 de Outubro» não foi nunca uma memória consensual, antes se manifestou sempre como alvo de disputas e de conflitos. No regime fascista, a data era comemorada anualmente pelas oposições democráticas para combater a ditadura e para exigir a libertação dos presos políticos e a reposição das liberdades públicas e da democracia. A estas manifestações democráticas correspondia o regime com repressão, mais prisões e sessões públicas onde se evocava a Primeira República como um regime opressivo, libertário e sanguinolento.
Não terá sido por acaso que, em 2013 – três anos depois das Comemorações do I Centenário da República –, o governo e o Presidente da República da altura se conjugaram para acabar com o feriado do 5 de Outubro, num dos períodos mais negros da história do país, sujeito a uma política excecional de restrições dirigida pelos grandes centros financeiros internacionais de comando económico e político.
A memória sobre a I República é, pois, ainda hoje, uma memória conflitual e problematizadora das grandes transições que marcaram o séc. XX português: da transição revolucionária que, por processo violento e traumático, derrubou a velha Monarquia dos Braganças, na base de uma promessa redentora do país e dos portugueses, e da transição golpista que, em 1926, prometendo a regeneração e a superação das dificuldades políticas e económicas, se impôs pelo cerceamento das liberdades públicas, em nome da segurança e da ordem castradora da mudança.
As heranças destas transições continuam a ecoar pelo pensamento político dos nossos dias. Para as direitas, a Primeira República continua a ser – como de algum modo o foi para o regime fascista de Salazar –, um regime revolucionário e violento, com grandes ambições patrióticas, mas na verdade incapaz de realizar o programa a que se propôs pelo facto de ter tentado substituir as elites económicas, políticas e religiosas do país por uma nova geração de gentes das camadas intermédias e populares. Ao invés, para as esquerdas modernas que despontavam em 1926, os golpistas serviram-se dos generais para repor a ordem tradicional que tinha conduzido a Monarquia a um beco sem saída e para bloquear os caminhos da liberdade e da emancipação das camadas populares.
Não são, portanto, inócuas e mortas as memórias da Primeira República e da «Revolução de 5 de Outubro». Exigir um consenso sobre a sua memória é bloquear a batalha (sempre inacabada) entre as diferentes conceções e projetos políticos que animaram (e animam) a luta dos homens pela justiça social e pela igualdade republicana. Marx afirmava que nenhuma projeção do futuro podia alguma vez substituir o conhecimento seguro que nos advém da análise da história vivida. Não podemos antecipar o tempo da História como o fazemos num laboratório de física com as leis da relatividade. O verdadeiro sentido da História só o percebemos muitos anos depois do acontecido, por vezes no fragor das ondas de choque que permanecem no tempo longo.
Quem pode hoje ignorar a injustiça da «guerra religiosa» movida pelas instituições clericais contra a nova ordem constitucional republicana? Movida por interesses económicos e sociais momentâneos, a Igreja e os seus sacerdotes foram incapazes de compreender e aceitar a modernidade de um Estado que tolerava todos os credos religiosos e impunha o fim da Religião Católica como religião do Estado. Quem não considera hoje execrável a defesa dos velhos privilégios nobiliárquicos que moveram a reação das classes possidentes e togadas em sucessivas incursões e bravatas, até desembocarem na ridícula «Monarquia do Norte»? E quem pode hoje deixar de prestar a maior atenção ao estudo e compreensão das lutas operárias que marcaram o ritmo e a estratégia republicana logo desde os anos de 1911-1912? Muito escorraçada e diminuída estaria a gente operária para, desde o II Congresso Sindicalista de 7 de maio de 1911, invetivar os trabalhadores na sua imprensa a «afastarem-se dos centros políticos e das ilusões democráticas», orientando-os para a «ação direta», numa descrença completa do «intervencionismo estatal e das reformas legais».
Ou quem pode ainda hoje ignorar o que de trágico trouxe ao séc. XX português a opção colonial republicana, enredada num projeto nacional comprometedor e arriscado, ele próprio motivador da entrada de Portugal na I Guerra Mundial?Não há, portanto, memórias unívocas e consensuais, quando sujeitas ao Tribunal da História. Elas assaltam-nos na sua irrefragável diversidade, sem que possamos algum dia ignorar a complexidade da vida vivida. Contudo, para além do fragor dessa vida, permanecem princípios que prezamos como valores de cultura e de civilização ainda hoje insuperáveis. E à República teremos sempre que associar, para além da generosidade e honradez sem limites de alguns dos seus construtores, os valores da Liberdade, da cidadania plena, da igualdade (no limite da socialização dos bens), da democracia, do patriotismo, da laicidade, do progressismo, do associativismo e do universalismo emancipador e fraterno.
Também aqui, em torno destes valores aparentemente universais, teremos quem os defenda e quem os combata. Mas é exatamente por essa razão que os republicanos comemoram a República, não como uma prenda oferecida, mas antes como uma jornada de combate.
artigo publicado no boletim da URAP nº. 166 de 2021