Silvestre Lacerda é licenciado em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e possui o curso de especialização em Ciências Documentais, opção Arquivo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. O director da Direcção-Geral dos Livros, Arquivos e Bibliotecas (DGLAB), desde 2015, é o responsável pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Silvestre de Almeida Lacerda, 63 anos, tem vasta experiência profissional a nível nacional e também internacional - destacando-se neste último o Programa Iberarquivos – Programa ADAI (Apoio ao Desenvolvimento de Arquivos na Iberoamérica); Associação Latino-Americana de Arquivos; Grupo de Peritos em Arquivos, junto da Comissão Europeia; Comissão Luso-Brasileira para a Salvaguarda do Património Documental - na área dos Arquivos, do Património Cultural, das Bibliotecas e leccionou na Universidade dos Açores e na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Nesta entrevista ao Boletim da União de Resistentes Antifascistas Portugueses interessou-nos sobretudo conversar sobre as relações que o Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) tem com a URAP.
No ANTT existem documentos desde o séc. IX até aos dias de hoje, alguns deles referem-se ao período de resistência ao fascismo em Portugal (1926/74), pode-nos falar sobre eles?
SL – O ANTT possui 100 Km de documentos, sendo o maior arquivo português, sendo o original mais antigo datado de 882. Os arquivos como evidências das atividades humanas refletem as políticas administrativas desenvolvidas pelos Estados, nessa perspetiva todos os arquivos da época contemporânea estão associados às atividades desenvolvidas pelas principais personalidades e organizações, os quais se encontram, na sua grande maioria, no ANTT. Alguns arquivos encontram-se ainda nas respetivas instituições produtoras, como e o caso de órgão de soberania, por exemplo Presidência da República, Assembleia da República, os arquivos militares, os arquivos diplomáticos, os arquivos das forças militarizadas.
A pesquisa no ANTT pode ser feita presencialmente ou através da internet em https://antt.dglab.gov.pt/pesquisar-na-torre-do-tombo/fundos-e-coleccoes/
No ANTT encontram-se os arquivos das principais figuras e organismos do regime fascista português. Citemos a título de exemplo: o Arquivo António Oliveira Salazar, o Arquivo Marcelo Caetano, o Arquivo da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, o Arquivo das Policias Políticas, o arquivo da Legião Portuguesa masculina e feminina, o Arquivo da União Nacional, o arquivo do SNI em particular o da Censura, entre outros. Também um conjunto de documentos de origem particular passaram a integrar o ANTT, sendo disso exemplo o da extinta Fundação Humberto Delgado, Arquivo do Partido Socialista, o Arquivo Pessoal Beatriz Cal Brandão, o Arquivo Manuel Tito de Morais https://digitarq.arquivos.pt/details?id=6074876 , entre muitos outros de resistentes ao regime fascista em Portugal e no estrangeiro.
Como historiador há algum documento, ou conjunto de documentos, que o impressione mais e que dê uma visão mais clara da ditadura e da resistência ao fascismo?
SL – Embora não seja historiador mas arquivista, o arquivo que mais impressiona pela sua dimensão e diversidade de documentação é o arquivo da polícias políticas, nomeadamente da PVDE e da PIDE/DGS e o seu ficheiro central constituído por cerca de 5 milhões de fichas de recolha de informação individual e coletiva, para além das cerca de 20.000 caixas e 500 livros, ocupando cerca de 2,5 Km de prateleiras.
Quais são as principais formas com que este espólio tem sido enriquecido?
SL – Tem sido enriquecido por incorporação obrigatória por lei da Assembleia da República, por doações, por depósitos temporários (30 anos) e em colaboração com a Policia Judiciária têm sido apreendidos vários documentos que se encontravam indevidamente em posse de particulares e que por lei deveriam estar nos arquivos públicos, em particular no ANTT.
Cabe ao ANTT salvaguardar, valorizar e divulgar esses documentos. Como é que isso tem sido feito?
SL – Tem sido feito através da disponibilização em base de dados dos registos e imagens de documentos, https://digitarq.arquivos.pt/ através da realização de exposições físicas nas instalações do ANTT e virtuais, no sitio web https://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/ , o apoio a realização de colóquios e publicações tem sido outras atividades desenvolvidas com frequência.
Pode-se ir mais longe nessa divulgação? Como promover junto de jovens e estudantes?
SL – Têm sido promovidas visitas de estudo orientadas. Qualquer professor/orientador/animador pode solicitar e que pretendem promover junto dos jovens o conhecimento para uma cultura democrática. Dispõe de um espaço de Serviço Educativo https://dglab.gov.pt/servicos/servico_educativo/
Em relação ao arquivo da PIDE, que informação se pode retirar desse tipo de documentos?
SL – O arquivo da PIDE encontra-se aberto a quem o queira consultar desde que tenha mais de 18 anos. Qualquer cidadão maior de idade pode consultar este arquivo independentemente de ser o próprio ou seu familiar para fins de estudo, investigação ou por simples curiosidade. Também pode ser consultado para efeitos legais como por exemplo para contagem de tempo de serviço de prisão ou clandestinidade para efeitos de reforma.
Tratando-se de um arquivo policial é necessário ter em atenção que a informação que contem está altamente filtrada e serviu os interesses repressivos e não o esclarecimento da verdade. Muitas vezes anexos aos autos de perguntas a que o preso estava sujeito encontram-se documentos apreendidos desde simples correspondência até documentos partidários de maior responsabilidade, fotografias, agendas para marcação de encontros clandestinos, bandeiras e outro material de propaganda. Foi constituída uma coleção com mais de 1400 objetos que se encontra na base de dados com as respetivas imagens e que é possível consultar em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4279957
Conhece-se o padrão de utilizadores que os solicitam e há dados estatísticos sobre as consultas?
SL – Os utilizadores que procuram estes documentos são muitos diversos entre eles investigadores universitários, resistentes, familiares dos resistentes e cidadãos à procura de conhecimentos para a história local. A tendência tem sido de uma maior procura destes documentos conforme vão surgindo novos estudos.
A cooperação entre o ANTT e a URAP tem sido vasta. Para além de utilizar salas para a realização de alguns eventos, tem tido o privilégio de usar os seus serviços para obter dados que reproduz em diversas publicações, nomeadamente sobre presos políticos. Que outras formas de colaboração vê como possíveis entre as duas organizações?
SL – Neste momento está a ser organizado um programa de voluntariado com a URAP para a digitalização integral das ordens de serviço dos 100 volumes das Policias Políticas o que nos vai permitir conhecer em detalhe e com maior rigor o movimento, as capturas e transferências de presos entre as várias cadeias do regime.
A cedência mútua de informação tem permitido complementar e melhorar a qualidade do conhecimento adquirido, nomeadamente nas publicações existentes.
entrevista publicada no boletim da URAP nº. 167 de 2021