por Carina Infante do Carmo, Professora universitária
Celebra-se em 2022 o centenário do nascimento de José Saramago, notável escritor (galardoado em 1998 com o Prémio Nobel da Literatura) e empenhado democrata e antifascista. Assinala-se igualmente os 60 anos da heróica luta dos operários agrícolas do Alentejo e Ribatejo, que desembocou na conquista da jornada de oito horas de trabalho, referida no romance Levantado do Chão, de José Saramago. Com este artigo, de Carina Infante do Carmo, a URAP comemora ambas as efemérides.
O romance Levantado do Chão (1980) corresponde ao nascimento de José Saramago como escritor de projecção nacional e internacional. Não que não tivesse obra publicada anteriormente de enorme qualidade e que não tivesse inclusivamente tentado o género romanesco, como o prova, antes de mais, Manual de Pintura e Caligrafia (1977), onde medita sobre os problemas da representação, preparando a elaboração dos mundos narrativos da obra subsequente. Só que, em Levantado do Chão, a mudança é mais funda. A marca inaugural do livro que, de resto, acompanha a consolidação da Editorial Caminho, associa-se à descoberta de um estilo de escrita, conforme Saramago declara a Juan Arias em O Amor Possível (2003):
"Quando ia na página 24 ou 25, e talvez esta seja uma das coisas mais bonitas que me aconteceram desde que estou a escrever, sem o ter pensado, quase sem me dar conta, começo a escrever assim: interligando, inter-unindo o discurso directo e o discurso indirecto, saltando por cima de todas as regras sintácticas."
Eis a génese da voz coral do narrador saramaguiano que modula dialogicamente a frase porque integra as personagens, inclusivamente o narrador e mostra a «admirável evidência da socialidade da linguagem», como lhe chamou Manuel Gusmão. Assim convoca a memória das tensões e da violência de um tempo histórico português e faz a travessia dos tempos com que reescreve a História pela ficção, a partir de um aqui e agora democrático e de liberdade. No fim de contas, aponta um sentido emancipatório da memória esquecida dos sem-História e da possibilidade de transformação social.
Levantado do Chão é a saga de uma família camponesa alentejana, os Mau-Tempo, ao longo do século XX. Traça com ela a história do latifúndio, carnavalizando a sua história oficial e os seus mitos. Conta a História a contrapelo, diria Walter Benjamin, de outra maneira, formula o narrador de Levantado do Chão, pela boca e olhar dos trabalhadores cuja gesta exalta, eles que, pelos séculos fora, foram modelando e fazendo a riqueza da paisagem alentejana.
A representação das personagens, da sua opressão e dos seus sinais promissores de resistência, incorpora matizes do testemunho popular: o fantástico, o maravilhoso, o picaresco, o humor e a sátira. Transporta-nos para o tempo da República e da I Guerra Mundial, para vários momentos da ditadura salazarista, sob o ponto de vista de uma subjectividade popular de que o narrador letrado se apropria e reelabora. E fá-lo expondo-se a si próprio nos seus procedimentos narrativos, revelando os limites do seu contar. Lembremos a cena da prisão de Germano Vidigal, um dos dedicatários do romance, militante comunista de Montemor-o-Novo que, em Maio de 1945, se destaca na luta dos rurais contra a ofensiva de fome do regime fascista. A cena é construída a partir do ângulo das formigas que transitam pela sala de um posto local da GNR, onde Vidigal, de inequívoco traço crístico, é torturado e morto. Tal opção coloca o leitor no cenário cruento e heróico e, ao mesmo tempo, afasta-o dele, por deixar visíveis os limites do narrador, por assinalar que a cena (com marca testemunhal de um figura e de um facto históricos) é imaginada e objecto de representação romanesca.
Este é um exemplo lapidar da novidade e de também das linhagens literárias de Levantado do Chão. De um lado, o livro revela os seus meios compositivos, definidores do romance metaficcional das décadas finais do século XX, excedendo assim a ficção realista anterior. Do outro, homenageia Garrett (citado na epígrafe), Raul Brandão ou o neo-realismo com os quais tem afinidades ideológicas e temáticas indesmentíveis. Em Diálogos com José Saramago (1998), de Carlos Reis, chega a declarar que Levantado do Chão é «o último romance do neo-realismo, fora já do tempo neo-realista». Com os ficcionistas neo-realistas tem em comum a cosmovisão marxista e o trabalho preparatório da ficção através da inquirição do terreno. Para escrever Levantado do Chão, Saramago escutou a oralidade dos camponeses do Lavre (Montemor-o-Novo) ̶ similar à que conhecera na sua Azinhaga natal ̶ e teve em conta o manuscrito autobiográfico do camponês João Domingos Serra que veio a prefaciar, em 2010, no livro Uma Família do Alentejo, editado pela fundação que leva o seu nome.
Para o autor, Levantado do Chão é «o último romance rural possível» (cf. Fernando Gómez Aguilera, As Palavras de Saramago, 2010) sobre um mundo em extinção e igualmente «outra maneira de contar, por vezes, a mesma história» (Vítor Viçoso, A Narrativa no Movimento Neo-Realista, 2011) da ficção neo-realista: especialmente a que, na década de 1940, tratou a epicidade do protagonista colectivo, na maioria pertencente ao proletariado rural e em parte mobilizado pela promessa revolucionária. Todavia, centrado que está no leitmotiv da privação da humanidade, o neo-realismo não se cingiu à denúncia das injustiças sociais, já que, sobretudo na fase de maturação dos anos 1950-60, deu corpo a personagens mais complexas, inclusive da burguesia rural decadente. Daí que sejam mais raros do que se pensa os heróis positivos e que se tenham multiplicado (em Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira ou Barranco de Cegos, de Redol) percursos malogrados, sem escapatória para a sua alienação, a não ser pela revolta anárquica, isolada ou fracassada.
Levantado do Chão discute a superfície do texto literário e apresenta-se ironicamente como revisão e cruzamento de vários discursos. Afinal, contar o passado implica escolher entre várias escolhas possíveis: neste caso, privilegia o lado esquecido da História, a exploração, a fome dos trabalhadores e, aos poucos, a sua consciencialização sobre a engrenagem do latifúndio e a necessidade de a terra pertencer a quem a trabalha.
Daí o epílogo evocar os que foram morrendo e os que ganharam noção da necessidade de se organizarem para lutar pelo direito ao trabalho, pela jornada de oito horas e pelo uso útil e comum da terra. E também os que, por fim, percorrem os campos para ocuparem herdades: homens e mulheres, mortos e vivos, homens e animais que se levantam e caminham lado a lado, erguendo a Reforma Agrária. Fixa-se aí o momento de júbilo e resgate dos povoadores antigos do Alentejo, forma de aproximação à vida e ao sonho que inclui o narrador e os seus leitores, graças ao livro em cuja contracapa se lê:
"Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo".
artigo publicado no boletim da URAP nº. 169 de 2022