por Pedro Tadeu, jornalista
Condecorado pelo Estado democrático com a Ordem da Liberdade e como Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, Adriano Correia de Oliveira já teve o reconhecimento de Portugal como resistente antifascista.
Adriano, como ficou para sempre conhecido, nasceu no Porto a 9 de abril de 1942, há 80 anos, e talvez seja acertado (estas coisas são sempre discutíveis) dizer que foi ele o primeiro cantor de intervenção português e que o canto de intervenção em Portugal nasceu com ele e com o Fado de Coimbra.
Quando em 1959 se mudou de Avintes, onde passou a infância e a adolescência, para estudar na universidade coimbrã, Adriano experimentou com outros estudantes tocar um pouco de rock mas apaixonou-se pelo Fado de Coimbra e pela evolução que tentavam imprimir ao género nomes como Edmundo de Bettencourt, António Menano, Machado Soares e Artur Paredes, um guitarrista e compositor importantíssimo para a história da guitarra de Coimbra, que é pai do genial guitarrista e compositor Carlos Paredes.
Por Coimbra andava também a cantar José Afonso, que influenciou Adriano, mas o primeiro a ligar, pelo menos em gravações, o protesto político à música foi Adriano Correia de Oliveira que, entretanto, aderiu ao Partido Comunista Português.
Mário Correia, no livro Adriano Correia de Oliveira – Vida e Obra, relata as influências de Edmundo de Bettencourt e José Afonso sobre Adriano e de como este, rapidamente, acaba por se tornar um percursor. Escreve ele o seguinte: «De um e de outro recolheu Adriano as influências suficientes para, com a poesia de Manuel Alegre e a guitarra de António Portugal empunhar a bandeira da canção de resistência com uma coragem que não teve igual aos cantores do seu tempo.»
Envolvido no movimento associativo académico que protestava contra o regime, com muitos espetáculos, plenários, reuniões, discussões, debates, ações de propaganda, lutas com as facções direitistas dos estudantes, Adriano encontra o ambiente para, citando palavras suas, fazer com que «a arte, seja ela qual for, reflita exatamente aquilo que se está a passar em cada sociedade».
Manuel Alegre, citado por Eduardo M. Raposo em Cantores de Abril, explica em «Recordar Adriano Correia de Oliveira» como este ambiente académico criou a canção de protesto, escrevendo o seguinte: «Foi então que se deu o encontro da poesia e da música, do poema e da voz (...) A tensão vivida, a energia nova exigem uma poética nova, uma poética ativa e útil (...) a vontade de mudar criava uma nova ética e precisava de uma nova estética(...) E assim nasceram as trovas.»
A importância das palavras
Entre essas «trovas» esteve A Trova do Vento que Passa, uma canção gravada originalmente num pequeno disco em vinilo com quatro canções e que foi editada em 1964 (e não em 1963, como erradamente muitas vezes se lê) e que se transformou num hino da resistência antifascista em Portugal, Seria, depois, gravada por muitos outros artistas.
Numa entrevista publicada em 1972 no n.º 27 da revista Mundo da Canção, a propósito do lançamento, há 50 anos, do álbum Gente de Aqui e De Agora, Adriano Correia de Oliveira explicou a importância que dava aos poemas: «Interessa-me dar as palavras e dar a música. As duas linguagens devem ter um papel paralelo, devem estar perfeitamente unidas. A instrumentação deverá ter a função de sublinhar exatamente o que resultar da fusão dessas duas linguagens».
E que palavras é que Adriano Correia de Oliveira queria cantar? Ele também o explica nessa mesma entrevista: «A intenção é a mesma: poemas que tratem de temas que tenham a ver com a nossa realidade social. Que a denunciem.»
Denunciar, para um artista em Portugal em 1972, queria dizer acusar o Estado Novo pelo autoritarismo, pela repressão, pela miséria de largos setores populacionais. Para Adriano Correia de Oliveira, militante comunista desde 1960, quando era mesmo perigoso pertencer a esse partido, a natureza da arte tinha um sentido político, tal como deixou expresso nessa entrevista: «Interessa que a arte, seja qual for, reflita exatamente aquilo que se está a passar em cada sociedade. Senão não é útil e falha substancialmente. Não corresponde à sua função.»
Dar poder ao mundo do trabalho
Adriano acreditava numa revolução liderada pelo proletariado e, depois do 25 de abril, lutou por isso. Podemos encontrar essa visão numa canção de 1975 intitulada No Vale Escuro. Essa canção pertence ao álbum Que Nunca Mais, que só tem letras do poeta Manuel da Fonseca.
O protagonista de No Vale Escuro relata as recordações de um homem nascido pobre, num bairro de lata com esse nome.
Em miúdo ele fugia sistematicamente à escola para brincar e que, quando cresceu, sem formação, foi obrigado pelo pai a entrar como aprendiz numa oficina. Aí, um patrão autoritário, abusador e violento, acabou por provocar duas coisas: um conflito físico grave e um caminho empírico para a consciencialização política do, ainda miúdo, aprendiz de operário.
Essa consciencialização política leva-o a pôr em causa as origens do poder do patrão e, ao mesmo tempo, leva-o a ser mais exigente consigo próprio, na busca do que, de forma simplificada, eu definiria como a procura da «dignidade pessoal».
Essa dignidade será conseguida, em primeiro lugar, no próprio trabalho, na própria profissão, embora já noutra oficina e já com um estatuto superior ao de aprendiz.
Em segundo lugar, essa dignidade será reforçada pelo regresso aos estudos, à manifestação de uma nova ânsia de saber mais, da necessidade de ir em busca de bases teóricas que permitam ao operário desta canção o aprofundamento da consciencialização política que a vida real lhe apontou.
Em terceiro lugar essa dignidade será complementada pela relação com a namorada e com os amigos mais próximos, companheiros de destino e de luta – sendo essa busca, portanto, um processo coletivo.
Nesta canção de Adriano Correia de Oliveira o trabalho operário que se descreve começa por ser infantil, ou quase infantil e tem o ambiente da pequena oficina de manufatura. Mas ao chegar a adulto o operário tenta construir o seu próprio futuro e procura juntar forças – as suas, as da sua experiência, as do saber que procura acumular, as dos amigos e, até, a da sua relação amorosa – para iniciar um processo de transformação do mundo do trabalho em que a relação de poder com o patronato seja mais equilibrada – está, portanto, a pensar numa revolução social.
A canção do operário de Adriano Correia de Oliveira e de Manuel da Fonseca é, como tantas outras músicas do cantor, uma canção de esperança.
E é essa esperança que, 80 anos depois, o legado de Adriano Correia de Oliveira nos deixa.
artigo publicado no boletim da URAP nº. 170 de 2022