por Manuel Pires da Rocha, músico
Nasce uma pessoa para o mundo e logo um nome lhe dão. Às vezes o nome pega, e por ele se responderá vida fora, nos bons e nos maus chamamentos. Outras vezes, essa vida mesma que a uns dá onomástico sossego, a outros há-de assinalar feições particulares ou salientes acções que virão a ser alcunha, primeiro, e logo a seguir nome próprio no que, de vida, restar. E quem diz pessoas, suas obras poderá dizer.
Foi o que aconteceu ao poema Abandono, assim baptizado por David Mourão-Ferreira, que o escreveu e publicou em 1959, e que havia de ganhar diverso nome por razões que adiante se dirão. Abandono migrou, primeiro, da folha de papel para a partitura de Alain Oulman e, dali, para a voz de Amália Rodrigues, que registou este fado (e alguns mais) no palco do velho Teatro Taborda, ali à Costa do Castelo, ao lado do guitarrista José Nunes, do viola Castro Mota e do compositor e pianista Alain Oulman.
Poema de amor parecia ser aquele, porém denunciado pelos versos que diziam “apenas ouves o vento, apenas ouves o mar”. Quem assim escreveu, sabia que o “longe” daquele poema era uma cela de cárcere, em que a engenharia aplicada à repressão política negava, ao olhar dos presos, a visão do mar e do voo suspenso das gaivotas contra o vento. O “longe” era a fortaleza de Peniche, razão por que Abandono tomou o nome de Fado Peniche.
O facto de ser Amália Rodrigues a divulgadora do poema de David Mourão-Ferreira não é um elemento de menor importância na repercussão que o Fado Peniche viria a conhecer. Amália era tida entre os dignitários fascistas como personagem-chave daquilo que hoje se designa “diplomacia cultural”, estatuto que a terá poupado aos rigores da censura e demais incómodos. Talvez seja essa razão de o LP “Busto” (assim chamado por reproduzir na capa um busto da autoria de Joaquim Valente, fotografado por Nuno Calvet) não ter sido retirado de circulação, ainda que a difusão de Abandono tenha sido proibida na Emissora Nacional.
Perante as dúvidas levantadas acerca da fidelidade da Amália à orientação ideológica do regime, a Fadista afirmou não ter percebido qualquer intenção conspirativa no belo poema de Mourão-Ferreira. Seja como for, com intenção desafiadora disfarçada de ingenuidade ou mais corajosa posição, Abandono permaneceria - Fado Peniche, já - no reportório de palco de Amália Rodrigues.
O jornalista Miguel Carvalho, autor do livro “Amália – ditadura e revolução (a história secreta)”, duvida da ingenuidade da Fadista, afirmando que “a mesma Amália com que o regime flirtava e que, em certos casos, se permitiu ser usada pela ditadura, proporcionou, ao longo de várias décadas, ajuda preciosa às famílias dos presos políticos, à resistência antifascista e a vários movimentos da oposição a Salazar”. Miguel Carvalho aponta, a este propósito, dois fatores porventura estruturantes das opções “subversivas” de Amália Rodrigues: a sua origem de classe e a relação de amizade ao longo de toda a vida com Maria Alda Nogueira, destacada dirigente comunista.
Alain Oulman, o outro poeta do fadoAlain Oulman revela em “Busto” uma nova forma de escrita do Fado, incorporando na sua obra traços essenciais do corpo musical da velha canção lisboeta. Afirma David Mourão-Ferreira que “deve-se a Alain Oulman, logo a partir de finais dos anos cinquenta, a pioneira missão de estabelecer um determinado e fecundo enlace entre a poesia portuguesa de matriz ‘culta’ e essa específica forma da música popular – o Fado – que até aí era objecto de um quase geral e sobranceiro menosprezo por parte da inteligentzia nacional”. Oulman, o compositor, vai à procura dos poetas nas estantes da Biblioteca Nacional, procurando nas palavras a razão de ser da música que virá a compor. Ele explica: “tenho feito, no que me toca, sempre a música para um poema já escolhido. Só me lembro de um caso em que se passou o contrário – a ‘Gaivota’, de Alexandre O’Neill, que foi escrita para uma música que já tinha composta. É que um poema de qualidade é uma coisa muito séria e por isso parece-me melhor aceitá-lo e procurar-lhe uma música adequada do que subordiná-lo às exigências de uma composição que lhe foi alheia e o ignorou completamente ao longo da sua elaboração”. (“A Capital”, 27/02/1971).
O “Busto” viria a ser o primeiro álbum de trabalho de Oulman com Amália. Editado em 1962, integrava vários poemas de David Mourão-Ferreira: “Maria Lisboa”, “Madrugada de Alfama”, ”Abandono” e “Aves Agoirentas”, todos com música de Alain Oulman. Antifascista confesso, e como tal reconhecido, o músico viria a conhecer o exílio em 1966, então director artístico da Companhia Portuguesa de Comediantes. A 18 de Fevereiro desse ano, de manhã, três agentes da PIDE invadiram a sua casa nas Amoreiras, onde vivia com Felicity Serra, seguindo algemado para a António Maria Cardoso, primeiro, e depois para Caxias. Passou pelos interrogatórios da polícia política, pelas torturas da estátua e do sono. A pressão exercida pelo governo francês sobre os governantes fascistas conseguiu a libertação de Oulman, mas não o livrou da expulsão de Portugal.Amália Rodrigues, indiferente à distância e aos motivos da ausência forçada do compositor, continuou a trabalhar com Alain Oulman, de quem disse que “para além da música, o Alain, com a sua vasta cultura, fez-me travar conhecimento com grandes poetas. Ele não só fazia as músicas, como ia procurar, aos livros de poesia, letras para as músicas. Dedicou-me um tempo grande. (…) Trabalhámos muito os dois. (…) O Alain trouxe um público que não estava comigo e, ao mesmo tempo, afastou um bocadinho outro público, a começar pelos guitarristas. O José Nunes, quando ia tocar coisas do Alain, dizia sempre: ‘Vamos às óperas!’” (“Amália uma biografia”, pp.150).
O Fado Peniche era uma dessas “óperas” – o objecto estético em que o libreto desafiador da violência fascista encontra a partitura que lhe dará voz e aplauso, assim passando de mão em mão, de voz em voz. Calham ser as óperas (também) relatos da vida dos heróis. Como, afinal, o do poema, levado "longe encerrar", guiando a sua esperança (a sua confiança) pelo rumor do vento, pelo fragor do mar.
artigo publicado no boletim da URAP nº. 171 de 2022