Mesmo quando surge na guerra, a partitura progressista e o canto passado de voz em voz são sempre Manifesto pela Paz. Como naquela Sinfonia n.º 7, "Leninegrado", de Chostakovitch, apresentada em 9 de Agosto de 1942, um dos 900 dias do cerco nazi à cidade do Báltico (pelos músicos da Orquestra da Rádio de Leninegrado a que se juntaram músicos militares).
Como no Quarteto Para o Fim dos Tempos, composto por Olivier Messian, prisioneiro do Campo de Concentração nazi de Görlitz. Como em cada uma das Canções Heróicas de Fernando Lopes-Graça, cantadas primeiro pelo Coro da Academia de Amadores de Música e, logo a seguir, pelas muitas vozes que, também cantando, lutavam pela democracia.
Há quem diga que a Arte, por si só, é incapaz de mudar o mundo. Não é, porém, dos objetos – sejam pintura, poema, escultura, melodia – a qualidade de serem exteriores à intenção de quem os produz e à compreensão de quem os percebe. Na verdade, não se pode ser contorno à revelia de quem o talhe e de quem o olhe; nem se é melodia sem haver quem a invente e quem a escute; e verso não se pode ser independentemente de quem o escreva e de quem o compreenda. Seja como for, quase todos os humanos revelam idênticas compreensões perante o bem e o mal.
Por isso é que a Guernica de Picasso é horror mesmo para quem não viveu o bombardeamento da cidade basca; por isso é que o Chant des Partisans, de Anna Marly, é mobilizador, mesmo para quem nunca tenha ouvido falar da resistência popular ao fascismo. A Arte é capaz de mudar o mundo, sim, por ser uma criação humana e ser, por essa razão, instrumento da História, presença permanente nas lutas todas pela emancipação – desde a cela da prisão à frente de batalha.
Cultura é Resistência mas é, necessariamente, muito mais. Cultura é construção além dos muros, ou seria assunto de trincheira. É por ser matéria do Futuro que muito do canto de luta (não só de resistência) que vem acompanhando a História se reinventa esteticamente, não abdicando da convicção de que a Arte não é o lugar da repetição, nem encontra eficácia na simplificação menorizante. O alto valor poético e musical do canto de luta recusa ser camuflagem – é antes substância, capaz de se projetar no tempo.
Numa época em que a música "moderna" de natureza comercial ocupa a maior fatia do espaço mediático (para ser engolida pelo esquecimento poucos dias depois de abandonar os top's), também ela elemento da batalha ideológica que se vem travando, o canto de luta permanece atual no propósito e na proposta artística.
Ainda há poucos dias, nas ruas de Santiago do Chile, El Derecho de Vivir soava brilhante, tão urgente como no dia em que Victor Jara a cantou pela primeira vez, há já quase 50 anos. Este é um canto tão essencial como o de Woody Guthrie, que cantava a América dos "ninguéns". Cantando "This Land Is My Land, This Land Is Our Land" resumia em pacíficas palavras o maior dos desafios aos cultores do capitalismo: o da intenção da posse colectiva do território, poderosa metáfora da pátria.
As metáforas, porém, tinham para Woody os seus limites. Para que não restassem dúvidas sobre a intenção do seu canto, teve o cuidado de escrever no tampo da sua guitarra: "This Machine Kills Fascists". Outros viriam mais adiante mobilizar, cantando, os milhares que desencadearam, dentro dos EUA, lutas contra actos de agressão como a guerra do Vietname, convertidos em derrotas. Talvez tenha estado, no coro dos que cantaram We Shall Overcame, acompanhando Joan Baez ou Pete Seeger, algum neto dos soldados internacionalistas do Abraham Lincoln Battalion, que combateu pela República em Espanha e deixou-nos, para além do exemplo, canções como Jarama Valey, que o mesmo Guthrie e também Pete Seeger não deixaram esquecer.
Quiséssemos fazê-lo e seria possível, com apenas canções, escrever a História das lutas emancipadoras dos últimos 100 anos. Cancões emergindo para serem garantia de humanidade nas lutas às vezes muito violentas. Como no caso Katyusha, nome de mulher, canção do Exército Vermelho e peça de artilharia. Sendo tudo isto, Katyusha é o trajeto de uma carta entre a Frente e a retaguarda, uma melodia viva empenhada em vencer a amargura da guerra. Ou ainda El Pozo Maria Luiza, canção popular galega convertida em hino dos mineiros das Astúrias e do Alentejo português, conservando a natureza de classe mas acrescentada da respetiva consciência.
Situada no quintal das traseiras dos EUA, os poetas, compositores e cantores da América Latina ofereceram à Humanidade algumas das mais belas canções de luta. Desengane-se, contudo, quem considere que a canção lutadora é apenas a que emprega palavras do léxico notoriamente combatente.
Às vezes sim, outras vezes não. Duermete Niño, por exemplo, é uma canção de embalar, sendo essa a razão essencial da sua presença no cancioneiro progressista mundial. Atahualpa Yupanqui, que a divulgou, dela disse que, "como todas as canções de embalar, calca a terra ao mesmo tempo que é um pouco metafisica" – uma mulher embala um "negrito", prometendo-lhe as iguarias que toda uma vida de trabalho nos cafezais não será capaz de pagar.
Não há mais profundo manifesto progressista do que o da denúncia das injustiças da sociedade de classes. Porque não há guerra mais feroz e total do que a da exploração do homem pelo homem.
Também em Pedra Filosofal, de António Gedeão e Manuel Freire, a elegante violência das palavras está na acusação de que "Eles não sabem nem sonham / Que o sonho comanda a vida", para logo se afirmar que "Sempre que o homem sonha / O mundo pula e avança / Como bola colorida / Entre as mãos duma criança", numa afirmação de confiança no valor mobilizador da utopia que quer ser programa (sonho) a concretizar. "Léxico notoriamente combatente" foi o que usou Chico Buarque na canção Apesar de Você, escrita durante a ditadura militar de Emílio Médici: "Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Este samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza / De desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar". Tamanha claridade não foi, contudo, evidente para a censura fascista brasileira, que só mais tarde viria a proibir aquilo que lhe pareceu ser o relato de um arrufo de namorados...
O eufemisticamente denominado Estado Novo português não se poupou ao uso de todos os ingredientes que considerou necessários à construção de um perfil marcadamente fascista. A repressão total contou, contudo, com uma resistência tão generalizada e de tanta qualidade, que poderemos afirmar que o Portugal cultural que, hoje, resiste a ser digerido pelos impérios que se perfilam, é ainda o herdeiro dos valores anti-fascistas. Por isso é que as canções que se apresentam para acompanhar as novas lutas são as que, vindas de longe, venceram o filtro do tempo e permanecem atuais - (infelizmente) nas palavras e (felizmente) na música. Cantemo-las, pois!
Texto publicado no boletim da URAP nº161 (Jan-Mar 2020)