No âmbito da rubrica "Testemunhos", a URAP vai publicar em três fascículos (nos sábados 22 e 29 de Maio e 5 de Junho) a história da prisão de Luísa Vaz Oliveira, em Abril de 1970, estudante do 3º ano de Económicas no ISCEF, de Lisboa, e condenada a 21 meses de prisão pelo seu envolvimento no movimento estudantil antifascista. Luísa Vaz Oliveira, então com 22 anos, conta a tortura do sono que sofreu na sede da PIDE, na António Maria Cardoso, o isolamento em Caxias, os interrogatórios, a doença que padeceu na prisão, os fortes laços que estabeleceu com outras presas, o julgamento no Tribunal da Boa Hora. Um relato na primeira pessoa, para que a memória não se apague.
"No dia 10 de Abril de 2016, pela manhã, olhei para o calendário e exclamei: «Faz hoje 46 anos que fui presa pela PIDE-DGS!»
De facto, pelas 8h00 do dia 10 de Abril de 1970, tocaram, com força, duas vezes seguidas, à porta de casa dos meus Pais, ao Areeiro. À abertura da porta não sei por quem mostraram o cartão e subiram rapidamente as escadas para o 1º andar e dirigiram-se ao quarto do meu irmão. Apercebi-‑me imediatamente do que se estava a passar e ainda consegui esconder uns “Avantes”2 clandestinos no cesto da roupa suja da casa de banho ao lado do quarto do meu irmão."
Luísa Vaz Oliveira
10 de Abril de 1970
Memórias de uma prisão em Caxias
Abril de 2016
Aos meus Pais,
aos meus Irmãos,
à Teresa.
Nota
Para proteger a identidade dos visados nestas memórias, apenas o meu nome, o do Fernando Espada, da Fernanda Gonçalves e do Ezequiel Vicente e dos seus advogados são verdadeiros. Estas memórias baseiam-se unicamente na minha história pessoal.
Não foi seguido o Acordo Ortográfico de 1990.
Prefácio
A minha participação na luta estudantil contra o fascismo – e que conduziu à minha prisão – resultou apenas de um profundo sentimento de dever.
O real e concreto significado, o embate e a onda de destruição física e, acima de tudo, psíquica provocados por uma prisão pela PIDE são impossíveis de descrever e, mais ainda, de delimitar. O pleno impacto durante o seu decurso mas, fundamentalmente, as suas implicações ao longo da vida de cada preso e a devastação emocional que produziam e produziram em toda a sua família são incalculáveis.
Muito para além do medo da PIDE, do terror de poder não conseguir resistir, da ansiedade, das saudades da minha casa e do convívio com os meus familiares, ficou-me para o resto da vida uma doença crónica, auto- imune, muito dolorosa, de cariz fortemente incapacitante, pela rigidez articular que provoca, e que pode atingir outros órgãos, no meu caso os olhos e o aparelho respiratório. Esta requer uma aturada atenção aos sucessivos sintomas e crises, com acompanhamento clínico persistente e de qualidade.
Mas ficou-me também um sentimento muito doloroso pelo sofrimento que infligi a toda a minha família, a quem dedico estas memórias que decidi escrever:
Ao meu Pai, que me incitou muita coragem na hora da despedida, quando a PIDE me levou. O meu Pai, sempre tão calado, mas tão nosso amigo e tão sensível, sofrendo em silêncio.
À minha Mãe, a matriarca da família, com uma inabalável coragem na forma de enfrentar os “pides”, sempre tão combativa para me proteger, para que me fossem permitidos os estudos, lutadora incansável para que fosse consultada pelos melhores médicos ainda em Caxias, para que me fossem administrados os tratamentos necessários para me diminuir as dores e combater a progressão descontrolada da doença. A minha Mãe que ficou com o coração em chaga pela perseguição encarniçada da PIDE contra o meu irmão. A minha Mãe que, de cama, a sofrer com uma dolorosíssima crise de hérnia discal, não foi respeitada pelos “pides”, que enraivecidos até debaixo da sua cama espreitaram em busca do meu irmão.
Ao meu irmão, que voltou a ter os “pides” enfurecidos no seu encalço para de novo o prenderem. O meu irmão que, na altura apenas com 18 anos, teve que se esconder e sofrer como só ele sabe, para conseguir chegar a França. O meu irmão a quem a PIDE destruiu a juventude.
À minha irmã a seguir, tão traumatizada que até no dia do meu casamento com o Fernando, a 8 de Abril de 1972, entrou em pânico ao ouvir um duplo toque de campainha − de uma pessoa muito nossa amiga −, pois julgou que era, de novo, a PIDE.
Às minha irmãs mais novas, que viveram a sua adolescência no clima de terror que a PIDE criava, arrancando-lhes a calma e a alegria que naquelas idades deviam ter tido, ficando a juventude de ambas marcada e moldada pelo corre-corre das idas a Caxias e da vida familiar sempre em torno da minha prisão, que se sobrepunha a tudo e a todos.
À querida Teresa, que desde os seus 33 anos até à sua morte sempre nos acompanhou, que tanto e tanto ajudou a nossa Mãe a criar-nos. A Teresa que tanto trabalhou para que a roupinha lavada nunca me faltasse em Caxias, bem como as suas boas comidinhas, os bolinhos e tantos mais mimos. Como teria sido a vida da nossa família sem a sua preciosa e dedicadíssima colaboração? Impossível sequer imaginar!
A toda a minha família e a todos os amigos que tanto nos ajudaram, uma palavra, muito, muito sentida, de agradecimento.
FASCISMO NUNCA MAIS!
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No dia 10 de Abril de 2016, pela manhã, olhei para o calendário e exclamei: «Faz hoje 46 anos que fui presa pela PIDE-DGS!»
De facto, pelas 8h00 do dia 10 de Abril de 1970, tocaram, com força, duas vezes seguidas, à porta de casa dos meus Pais, ao Areeiro. À abertura da porta não sei por quem mostraram o cartão e subiram rapidamente as escadas para o 1º andar e dirigiram-se ao quarto do meu irmão. Apercebi-‑me imediatamente do que se estava a passar e ainda consegui esconder uns “Avantes”2 clandestinos no cesto da roupa suja da casa de banho ao lado do quarto do meu irmão. Só muito depois pus a hipótese que a busca visasse inicialmente apenas o meu irmão.
O meu quarto ficava no mesmo piso do dele, onde os agentes da PIDE tinham já começado a busca. Eu tentava ainda retirar da carteira de mão uns papéis, para os rasgar, com notas manuscritas de uma recente reunião secreta, incluindo parte de uma senha para um encontro com uma pessoa na clandestinidade. Mas os “pides”, muito “batidos”, apercebendo-‑se do meu movimento e nervosismo, lançaram rapidamente mão à carteira, reviraram-na e apanharam os papéis. A busca, minuciosa, passou a abranger o meu quarto. Aí apreenderam também um exemplar policopiado do Rumo à Vitória.
Cerca das 12h00, os agentes homens, julgo que quatro deram por terminada a busca e levaram-nos, ao meu irmão e a mim, de casa dos nossos Pais. Estavam para se despedir de nós as nossas irmãs, a Teresa e, claro, os nossos Pais. Lembro-me da minha Mãe me ter beijado mas, sobretudo, do abraço forte do meu Pai e do que me segredou ao ouvido: «Força!».
A partir desse momento e até Agosto de 1972, nunca mais vi o meu irmão e poucas notícias consegui ter dele. O meu irmão tinha então 17 anos e era estudante do 1º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Eu, Maria Luísa Pires Marques Vaz Oliveira abreviadamente Luísa Oliveira tinha 22 anos e andava no 3º ano de Económicas, no Instituto de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), em Lisboa.
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Nesse dia, 10 de Abril de 1970, fui levada, entre dois agentes, no banco traseiro dum carro da PIDE que entrou pela garagem. Levaram-me pela escadaria principal, cheia de placas de mármore em homenagem a vários “heróis” daquela polícia. Usava uma saia em viés, de tecido aos quadrados castanhos e bege claro, um conjunto de malha cor de laranja e um casaco castanho, de fazenda, comprados pouco tempo antes. Essa toilette haveria de me acompanhar não só em várias idas à PIDE, como, ainda, no julgamento.
Pelo menos até cerca das 15h00, fiquei numa sala, tipo Secretaria ou Arquivo, onde trabalhavam várias mulheres com as quais não falei. Também não as vi mais. Fui a uma casa de banho anexa, com uma janela que dava para um desvão. Lembrei-me que seria melhor deitar janela fora uma caixa de pílulas anti-concepcionais, intacta, que tinha na carteira. Não o fiz, estupidamente, por ter medo que facilmente percebessem ser minha.
Arrependi-me amargamente de não o ter feito, pois foi-me apreendida nessa mesma tarde e, meses mais tarde, foi utilizada pela PIDE para humilhar a minha Mãe pelo meu “devasso” comportamento , numa das suas inúmeras, e sempre muito corajosas, idas à PIDE com exigências em minha defesa, em especial no que respeitava à minha saúde. A minha Mãe foi, de facto, uma mulher de enormes coragem e dignidade.
Logo na tarde do dia em que fui presa, a minha Mãe apresentou-se na PIDE a entregar algumas roupas e objectos de higiene, mas foi atendida com muito maus modos. Creio até que os agentes da PIDE recusaram receber as coisas. Eu, pelo menos, nada recebi e só depois de ser libertada a minha Mãe se lhes referiu. Ao fim da tarde desse dia, fui para o tristemente famoso 3º andar da PIDE, na sua sede, na Rua António Maria Cardoso, onde começaram os interrogatórios.
Fiquei sob tortura do sono, nessa mesma noite, pois junto com os manuscritos a polícia tinha encontrado a metade da senha para um encontro clandestino que se realizaria nessa tarde ou no dia seguinte. Apesar das perguntas e das várias insistências quanto ao local e com quem seria, nada respondi, tendo assim caducado a sua validade. Fui vigiada por mulheres agentes, aparecendo de vez em quando o Chefe de Brigada. Na manhã do terceiro dia, as agentes diziam que eu ainda estava «muito fresca», já que tinha chegado há pouco do exterior. Era preferível «ir passar uns dias a Caxias para quebrar, amolecer».
Fui, pois, para o isolamento, em Caxias, transportada numa carrinha Mercedes preta, viatura que era, então, utilizada pela PIDE no transporte de presos políticos. Fui para o Reduto Norte da Prisão de Caxias, um grande edifício branco, numa colina, vigiado pela Guarda Nacional Republicana (GNR). Um dos pisos era ocupado por presos políticos que não tinham sido remetidos para o Forte de Peniche, vigiados por guardas masculinos. Noutro encontravam-se todas as mulheres presas políticas, vigiadas por guardas femininas. O isolamento consistia em manter cada detida numa cela, sozinha. À entrada a guarda retirava-nos o relógio.
A cela era um quarto branco, pequeno, com janela e grossas grades tanto do lado exterior como interior do vidro. Uma cama de ferro, branca, feita. Uma mesa pequena e uma cadeira de madeira, um caixote do lixo em madeira. Chão de cimento. A um canto uma casa de banho completa, com polibã. De início não tínhamos nada nosso, além das roupas que trazíamos vestidas, pois ainda não tínhamos tido qualquer contacto com a família.
A sensação de solidão era imensa, pesada. Sem ninguém. Sem qualquer som. O isolamento custou-me imenso. O barulho da chave que a guarda prisional rodava para fechar a cela era-me dolorosíssimo. Metia-me medo. Era horroroso! Eu, que tinha passado a minha infância numa terra, em Angola, onde as casas ficavam no trinco mesmo à noite.
[1/3] [continua dia 29 de Maio]