História > Testemunhos
Álvaro Rodrigues,
Pequenas Histórias da Resistência, URAP, Abril 2004
"[...]Mas o chefe, continuando com os falsos impropérios, ameaçou-os com futuras penalizações caso fossem de novo apanhados, mandando-os limpar as paredes com as gabardinas que tinham vestidas e depois seguirem para casa. Jorge e Álvaro ficaram estupefactos com a encenação levada a cabo pelo chefe da esquadra, pois era uma forma de os libertar, e ao mesmo tempo de tentar salvaguardar minimamente a sua segurança[...]"
Após o término da II Grande Guerra, o imperialismo intensificou os siste¬mas de combate a um novo tipo de sociedade que trazia a esperança aos Povos do Mundo de uma vida mais justa e fraterna, e que nascera com a União Soviética.
Uma das formas encontradas foi a de um bloco militar constituído por vários países e denominado NATO.
Jorge Silva e Álvaro Rodrigues, jovens com 20 e 16 anos, pertencentes ao MUD Juvenil, tomaram a decisão de manifestarem o seu desacordo pela inte¬gração de Portugal nesse grupo, e de chamarem a atenção da população para esses inconvenientes.
Decidiram, como forma mais visível de protestar e correndo os menores riscos, escrever frases nas paredes dos prédios do Bairro da Conceição, em Setúbal.
Era uma forma clandestina de chamar a atenção das populações para as arbitrariedades cometidas pelo governo.
Nesta operação, que decorria a meio da noite, foram interceptados por um polícia, que os levou para a esquadra.
Ali aguardaram até ao amanhecer a vinda do chefe da esquadra.
Foram momentos de grande ansiedade e temor, pois tinham um mínimo de conhecimentos das violências cometidas contra aqueles que se manifesta¬vam contra o governo e as suas políticas.
Pela manhã ouviram vozes no interior da esquadra, que em determinada altu¬ra subiram de tom, transmitindo aos dois jovens uma tremenda angústia e até o terror pelo que poderia vir a ser os seus destinos imediatos. Já se viam nas mãos da terrível polícia política e a sofrerem os terrores das suas prisões.
De súbito, entraram na sala o chefe da polícia e o guarda que os prendera - aquele aos gritos - chamando-lhes gaiatos e vândalos, pois que tinham suja¬do as paredes dos prédios que tanto custa a conservar, perguntando-lhes se gostariam que fizessem o mesmo aos prédios onde moravam.
O tipo de discurso, invulgar para casos semelhantes ou com o mesmo objec¬tivo, tornou-os perplexos e a interrogarem-se sobre o que dali iria sair.
Os seus pensamentos começaram a encaminhar-se noutro sentido à medida que a conversa tomava a forma de uma reprimenda violenta por actos incons¬cientes e juvenis.
Perante a forma como o chefe ia aliviando o peso do delito, não obstante o eleva¬do tom de voz, o guarda murmurava: - "Não é só isso, chefe, não é só isso... "
Mas o chefe, continuando com os falsos impropérios, ameaçou-os com futuras penalizações caso fossem de novo apanhados, mandando-os limpar as paredes com as gabardinas que tinham vestidas e depois seguirem para casa.
Jorge e Álvaro ficaram estupefactos com a encenação levada a cabo pelo chefe da esquadra, pois era uma forma de os libertar, e ao mesmo tempo de tentar salvaguardar minimamente a sua segurança.
E assim saíram, o Jorge e o Álvaro, da cadeia onde estiveram algumas horas e onde chegaram a pensar que poderiam estar meses ou anos caso o enca-minhamento dos acontecimentos tivesse ido parar à sede local da PIDE.
Não sabemos o nome do chefe da esquadra da polícia de Setúbal, mas a sua atitude foi de uma coragem invulgar, muito particularmente para quem desempenha aquelas funções.
Sabiam a que estavam sujeitos caso o acontecimento fosse ao conhecimento da polícia política mas a resistência e a luta contra o regime fazia-se em todos os sectores da vida, mesmo nos mais inesperados.
Jorge e Álvaro seguiram o caminho de suas casas e, quando já se encontravam bem distantes da esquadra, ouviram passos apressados atrás. Era o guarda que os tinha prendido que, com voz ofegante, lhes pediu os bilhetes de identidade.
Perante a recusa da entrega, por dizerem não possuir, insistiu então que lhes dissessem os nomes e as moradas com a ameaça de que, se o não fizes¬sem, teria de os levar de novo ao posto.
Jorge, com a matreirice que os seus 20 anos lhe ensinaram, num regime de mentiras e de medos, após uma pequena reflexão, deu-lhe o nome e morada errados. O Álvaro, que facilmente compreendeu a estratégia, de imediato o imitou na fraude.
O guarda agradeceu-lhes em nome das filhinhas, e seguiu contente.
Jorge e Álvaro, com as pernas a tremerem, não ficaram presos. Desta vez...!