Intervenção do Comandante Simões Teles - 50 anos do III Congresso da Oposição Democrática
1 de Abril de 2023
Bento de Jesus Caraça escreveu (citamos):
O poder revolucionário duma ideia mede-se (…) pelo grau em que ela interpreta as aspirações gerais, dadas as circunstâncias do momento em que actua.
O 3º Congresso da Oposição Democrática foi revolucionário. A prova real é, primeiro, o Programa do Movimento das Forças Armadas ter colhido a inspiração nas principais teses aprovadas no Congresso e, segundo, a Constituição de Abril ser sua parente directa. O Programa do MFA constituiu a âncora que legitimou os governos provisórios e que deu suporte às negociações que puseram fim à guerra colonial, à realização das eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e à promulgação da Constituição em 2 de Abril de 1976.
As suas medidas imediatas ditaram o fim da ditadura fascista. A sua simples existência constituiu o primeiro obstáculo a que a acção militar se encaminhasse para o golpe militar clássico – o putsch desejado e tentado pelo general Spínola: no primeiro encontro de Spínola com o comando do MFA, ao fim do próprio dia 25 de Abril, em reunião decisiva na sala de comando no quartel da Pontinha, Spínola propôs que o Programa fosse suspenso. A recusa foi imediata. Por seu lado, a ligação à Constituição não deixa dúvidas.
Por conseguinte, estamos a falar de uma revolução, a que se seguiu à acção militar em 25 de Abril. Deste modo, mais do que comemorar, o que nos traz aqui é procurar identificar comportamentos e valores que ressaltaram da realização do 3º Congresso e que podem continuar a ajudar-nos a fazer um mundo melhor.
Sublinhamos dois:
Desde logo, o 3º Congresso não se limitou a escalpelizar o regime fascista em praticamente todas as suas componentes. Bem pelo contrário, propôs todo um edifício de medidas concretas, quer de curto, médio ou longo prazo. Tudo esteve exaustivo e bem ligado. Com essa exigência transmitiu-nos um valor básico que preside às relações sociais e políticas – a confiança. Além disso, os seus fazedores arriscaram um comportamento democrático à luz do dia, sabendo muito bem que a democracia não existia. Aquelas pessoas também eram confiáveis, eram corajosas perante o perigo e sabiam do que falavam e escreviam. A confiança invade todas as esferas do nosso relacionamento, incluindo a dos negócios, diga-se de passagem.
Depois, o 3º Congresso, sublimou, em larga medida, aquilo a que podíamos chamar a síndrome da Lua. Da Lua os humanos sempre viram e veem sempre a mesma face. A mesma face dessa mesma Lua que é sua companheira inseparável, de que muito gostam e com que se envolvem amiúde: serve-lhes de inspiração para incontáveis poemas com idílicos luares; deslumbram-se perante os eclipses; entusiasmam-se com o estudo minucioso das marés oceânicas, que à presença da Lua em grande medida se devem. E outros amores. Deste modo, é-lhes lícito, aos humanos, declarar peremptoriamente que, para viver em paz com a Lua, não precisam de conhecer a sua outra face. Pode até supor-se que a Lua não é esférica, que é um disco de espessura quanto baste para não se partir.
O não querer saber de outros lados de um assunto senão do que nos move ou cativa, ou das razões de uma posição contrária, ou desprezá-las, pelo menos menosprezá-las, é dos traumas mais perniciosos que enforma a nossa cultura. Ainda hoje continua a haver quem não queira ver que, o que para uns, no caso nós, foi guerra colonial, para quem nos combateu foram guerras de independência ou de libertação. Ou o que para a vítima da troica é austeridade para o banqueiro é abundância. Etc.
Então, se o 3º Congresso foi revolucionário o seu estudo há-de poder ajudar-nos a ganhar a confiança e a abertura de espírito necessárias para se ultrapassar as muitas dificuldades com que nos deparamos. Elenquemos algumas:
O Estado republicano está em frangalhos e à mecê da aplicação da ideologia neoliberal: pululam as chamadas entidades reguladoras, que mais não são que portas giratórias entre o público e o privado, não se percebe porque não são as direcções gerais a exercer as competências que lhes são atribuídas; não se percebe porque é que o Banco de Portugal é independente do governo de Portugal; e não há carreiras nem formação profissional na Função Pública, nem há liderança, já que os dirigentes de topo são da confiança partidária do momento; e fazer Justiça não tem prazos.
A prática democrática está em degradação, não só por cá. É urgente reinventar a democracia, chegar a uma democracia inclusiva onde o poder não represente apenas um em cada quatro dos cidadãos eleitores. De onde vêm os retrocessos da ordem democrática, o ascenso da extrema ou ultradireita, os ataques à democracia? Em tese, vêm de o neocolonialismo estar a acabar. Esta democracia que temos desenvolveu-se em paralelo com a exploração colonial. O regime cujo funcionamento é historicamente o mais democrático, o inglês, foi o maior colonialista até a capital do império ter mudado de Londres para Washington. Começa a ser uma evidência que esta democracia é parente do neocolonialismo e do imperialismo, precisa de usufruir das suas explorações para funcionar. Para vivermos depois do neocolonialismo teremos de inventar novas formas democráticas. E terá de ser depressa.
A comunicação Social (ou dita social) está, também ela, quase toda dominada pela visão neoliberal associada ao mercado. O mercado é o da publicidade. Para produzir uma notícia, um meio de comunicação tem de vender publicidade e, se for áudio visual, estar associado ao entretenimento. Como é sabido, os mercados tendem para o oligopólio e para o monopólio e é exatamente isso que se passa nos órgãos de informação e, mais uma vez, não só entre nós. Desse afunilamento resulta o afunilamento noticioso. Afinal, a Coca-Cola não é muito diferente da Pepsi-Cola, exemplo referido recentemente num contexto semelhante. A opção resume-se a uma questão de marketing. Pluralismo, rigor, verdade, espírito crítico estão sobretudo ausentes nos órgãos de Comunicação Social.
A guerra ou, melhor dizendo, as guerras, ou talvez ainda melhor as guerras híbridas – o que são as sanções económicas senão guerra? Hoje estamos em guerra, mas o direito que vigora é o do tempo de paz, os poderes têm as mãos livres para fazer o que lhes apetece em relação à guerra, de escolher estas ou aquelas sanções e não há maneira de os controlar. Uma sanção é a arma mais classista que existe, ultrapassa o âmbito de uma governação nacional e até intergovernamental, as decisões são tomadas no âmbito de multinacionais e da finança mundial, no seu único interesse. A esse desmesurado viés acresce que o tratamento informativo da guerra em curso faz-se deliberadamente na esfera das emoções, é gritante a ausência de debate crítico. É a Paz que perde e não é por acaso. Uma vez mais, estamos perante ditames do neoliberalismo.
Havia muito para continuar elencando, por exemplo, a desregulação das relações laborais, ou as crescentes restrições à liberdade que desabrocharam com a pandemia do Covid-19, ou a massificação de tecnologias, sem paralelo na História, que muda a qualidade dos seus efeitos.
Cabe terminar: por tudo para o que nos trouxe, honra seja feita ao 3º Congresso, aos seus organizadores, aos seus intervenientes. A melhor maneira de honrar a sua memória é reafirmar que, ainda que muitos possamos estar profissionalmente reformados, não estaremos nunca reformados para mudar o que está mal. Consegui-lo ou não no nosso tempo é irrelevante. Relevante é que não nos perdoaríamos até ao fim da vida se não o tentássemos, e tivéssemos de obrigar Mário Sacramento a voltar cá.
Obrigado pela Vossa atenção.