Intervenção de Duarte Martinho na evocacao da Fuga de Caxias
9 de Dezembro de 2023
Caxias, Monumento aos Libertadores e Libertados
Companheiros,
Aproveitar para cumprimentar todos os presentes nesta cerimónia evocativa que assinala mais um ano da grande fuga de Caxias.
Feito este natural intróito a qualquer exposição oral, estas palavras teriam, obrigatoriamente, de prosseguir com uma afirmação (ou uma lição) que certamente ninguém aqui contestará: a liberdade foi (e é) conquistada; não foi (nem é) concedida. Disso faz prova toda a história da luta antifascista, do processo revolucionário iniciado em Abril e também, por vezes pelas piores razões, o próprio presente. E bem assim, se me permitem destacar um episódio, na jornada do dia 27 de abril de 1974 quando se conquistou também a liberdade (no sentido mais imediato) para todos os presos políticos, contra a vontade do general Spínola. Foi sempre assim e continua sendo.
Cantava Adriano Correia de Oliveira que “Mesmo no tempo mais triste, em tempos de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. São vocês (os resistentes antifascistas) os que, na longa noite fascista, disseram não. Não à injustiça, à opressão, à miséria humana a que, nesses tempos negros, se chegou. Para fazê-lo foi (e é) preciso coragem, é preciso dignidade. Dizia o companheiro Urbano Tavares Rodrigues - permitam-me recordá-lo três dias depois do centenário do seu nascimento -, em entrevista à RTP em outubro de 1974, que tinha resistido à tortura essencialmente por dois motivos: o primeiro, companheirismo (uma mesma luta); o segundo mas não menos importante, respeito por si próprio.
Companheiros,
Que exemplo de dignidade o vosso! O respeito que tivestes por vós próprios granjeia-vos também o respeito dos demais. Exemplo que é por demais conhecido por todos os democratas e antifascistas, pelos trabalhadores, pelos intelectuais, pelos jovens que, neste país, hoje como ontem, continuam a luta pela defesa da liberdade e pelas demais conquistas democráticas alcançadas com a Revolução de Abril, para a qual tão importante foi a luta dos antifascistas e dos que passaram pela cadeia de Caxias.
De facto - e como já certamente tereis reparado - nasci bem depois do 25 de abril de 1974; nasci em 1997 mas - e isto importa - num país em que, fruto da vossa luta - não tive de experienciar a repressão fascista. Como eu, tantos! Não é pouca coisa.
A liberdade política que temos hoje permite-nos prosseguir a luta pelos outros direitos conquistados em Abril com outra dinâmica. É evidentemente preferível lutar pela concretização de uma CRP com um conteúdo tão progressista como a nossa (isto que é também fruto da vossa luta) e fazê-lo com liberdade política, ainda que por vezes as arbitrariedades de alguns o procurem impedir. Temos a Constituição do nosso lado.
Quando hoje continuamos lutando pelo cumprimento da Constituição, quando concretamente exercitamos a nossa liberdade, quando os jovens lutam pelos seus direitos e sentem os entraves, vão adquirindo consciência do quanto nos resta fazer para defender o que se alcançou e concretizar o projeto de Abril. Mas fazem-no - e isto o que queria destacar -, consciente ou inconscientemente, com a companhia do vosso exemplo: se vocês conseguiram resistir, como poderíamos nós abdicar de fazê-lo quando, com a revolução de Abril, lutamos em condições tão mais favoráveis?
É certo que os grandes grupos económicos arranjam outras formas de impedir o exercício da liberdade de cada um, manipulando através da mentira e utilizando os poderosos meios comunicacionais ao seu serviço, desregulando os horários de trabalho o que muito dificulta o trabalho de mobilização. Mas, ao menos, hoje podemos ir conversar e esclarecer os jovens que estudam ou trabalham connosco sem o receio de que por isso tenhamos de enfrentar a prisão e a tortura.
Companheiros,
Hoje evocamos os 62 anos da grande fuga de Caxias. Entre nós está o último sobrevivente dos que nessa aventura embarcaram, Domingos Abrantes, que falará em seguida e certamente vos poderá contar muito melhor que eu aspetos concretos dessa mesma fuga. O que sei, foi de o ouvir contar.
Em relação aos nomes destes e de outros resistentes antifascistas que na cadeia de Caxias estiveram presos vai a URAP, como já sabem os companheiros, editar um livro, resultante das investigações realizadas na Torre do Tombo, com registo de todos os que estiveram presos nesta sinistra cadeia.
O que eu quero no essencial transmitir-vos é que os jovens que lutam conhecem essa fuga, conhecem aliás os seus protagonistas, admiram a coragem e a dignidade, admiram, em suma, a vossa entrega a uma causa que nos torna a todos nós humanos: a causa da liberdade, para o povo português e para todos os povos do mundo.
Quanto a este último aspeto, e tendo em conta as atrocidades que têm sido cometidas, não podíamos deixar de aproveitar também este momento para expressar a nossa solidariedade de sempre com o heróico povo palestiniano (um povo heróico que resiste a uma violência absolutamente atroz e inaceitável), um povo que, embora deshumanizado pelos ocupantes, de forma alguma cede na sua dignidade. Estamos certos que vencerão.
Companheiros,
Retomando o tópico que hoje aqui nos traz, permitam-me sublinhar um aspeto daquela fuga: o motivo pelo qual ela se deu. A fuga daquele dia, como outras que sucederam, não foi um fim em si mesma; foi antes um meio, um decidido e voluntarioso meio de oito dirigentes comunistas retomarem a luta junto do seu povo.
Porque sempre foi essa uma ferramenta indispensável do combate pela transformação social: a luta popular de massas e, como sabem, os antifascistas, e em especial os comunistas, desde cedo o compreenderam. E se nós aqui o celebramos, nem por isso outros teimam em tentar apagar essa luta da nossa história. Daqui lhes voltamos a dizer que não poderão fazê-lo. Não poderão apagar nem a luta popular de massas hoje nem a memória da resistência ao fascismo. E como uma e outra andam ligadas terão de se resignar a tentar impor ideologicamente esse apagamento. Mas, companheiros, os que lutam sabem que esse é o caminho e os que não o sabem mais cedo que tarde se vêm obrigados a juntar-se à luta.
Face às injustiças de hoje, geradas pelos grandes grupos e interesses económicos que dominam o mundo, os trabalhadores e o povo e, em especial, os jovens respondem com a luta. Não nos resta outra alternativa. E fazê-lo com a companhia do vosso exemplo, companheiros, é força demasiada para os que contra a história querem remar. Em todo o mundo os povos (e repito: em especial a juventude) se levantam contra esses interesses que teimam em dominar o mundo. E honram os que no passado lutaram quando hoje dizem também “Não!”, não aceitaremos os retrocessos que nos querem impor.
Hoje lutamos ainda por coisas pelas quais vocês também lutaram, porque estão por concretizar. Não vamos desistir, teimem embora muitos em forçar, por todos os meios, essa desistência. E só com a luta conseguiremos efetivar a democracia, não apenas política mas também económica, social e cultural (assim o diz - é sempre bom lembrar - o artigo 2.º da nossa Constituição).
Companheiros,
Enquanto as injustiças, as guerras continuarem - tão próprias da natureza do regime capitalista -, enquanto nos quiserem fazer retroceder, nós resistiremos, e quanto mais tentarem impedir o progresso, com maior dignidade e superioridade moral prosseguiremos. Creio ser também esse o vosso exemplo. Se os grandes grupos económicos - que tudo controlam - pretenderem de novo passar desta democracia política para alguma forma de fascismo (será sempre diferente do passado), cá estaremos os homens e as mulheres, os jovens de hoje e os de amanhã que, conscientes da nossa história, saberão resistir.
Hoje lutamos pelas mais variadas questões: são os salários que não chegam ao fim do mês, são as rendas/prestação da casa que os absorvem por inteiro, os horários selvagens que nos são impostos o ensino que se vai privatizando e deteriorando, a saúde que querem entregar ao negócio da doença, o individualismo que nos querem impor, a resignação que querem fabricar. Basta olhar para as ruas companheiros para ver que quer os jovens quer os menos jovens estão em luta por tudo o que falta concretizar, estão em luta porque não aceitam as inevitabilidades que lhes querem impor e sabem que, no fundo, do que se trata é de opções políticas, opções essas que têm que ser revertidas pois um Estado democrático tem que dar respostas aos problemas dos trabalhadores, dos jovens, dos reformados e não governar apenas para satisfazer o egoísmo dos interesses económicos.
Lutamos com Abril, com o vosso exemplo e com a CRP do nosso lado: para vos dar um exemplo (para além dos direitos todos que lá sabeis consagrados) relacionado com este tema que agora referia: a al. a) do art. 80.º da CRP prevê a “subordinação do poder económico ao poder político democrático”. Não é indiferente. É que quem governa contra a Constituição, realiza uma política anti-democrática mas podemos apontar-lhes o dedo pelo seu concreto desrespeito e sensibilizar outros para que tomem disso consciência. É aliás o que temos feito.
Companheiros, para concluir queria destacar que os objetivos da URAP são (cfr. Estatutos, Art. 2.º) - de forma muito sintética -, defender a democracia e a vigilância antifascista, denunciar as violências do regime fascista, contribuir para a defesa da paz e da cooperação entre os povos, apoiar as vítimas do fascismo internacional, divulgar a resistência antifascista no mundo, promover a solidariedade com movimentos antifascistas noutros países e pugnar pelo reconhecimento público dos direitos e da autoridade moral dos combatentes da resistência antifascista.
É bom de ver que todos eles estão interligados. O reconhecimento que hoje fazemos publicamente da autoridade moral dos que naquele dia fugiram da sinistra prisão de Caxias serve, igualmente, os demais objetivos que nos propomos. Porque recordar a luta heróica dos resistentes antifascistas na nossa pátria é solidarizar-nos com todos os que, ontem e hoje, ao fascismo resistem mundo fora; porque fazê-lo é também defender a democracia e promover a vigilância antifascista.
Quero dizer-vos, para terminar, que os jovens estão vigilantes. Mas mais que isso sabem, pelo vosso exemplo, que é possível resistir e que não há outra forma para o fazer que não consista em mobilizar os trabalhadores e o povo contra as injustiças. Porque a memória que aqui exercitamos não é uma espécie de memória arqueológica mas uma memória que vive na ação dos que hoje continuam lutando.
Viva a URAP!
Viva os que lutam!
25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!