Caros Amigos Companheiros e Camaradas,
O convite para representar a URAP hoje, pela responsabilidade que acarreta e pela importância que lhe atribuo, deixou-me hesitante em aceitar.
Ao mesmo tempo, a honra de poder participar desta maneira enche-me de emoção e aqui estou para partilhar umas simples palavras convosco.
Fez ontem 44 anos que regressaram a Portugal 32 Heróis, quase quatro anos após o 25 de Abril de 1974. Nesse dia de muita chuva e de muitos e fortes sentimentos, mais de 200 mil pessoas acompanharam o cortejo.
Tal como nesse dia, temos também hoje o dever de memória para com estes revolucionários. E mais uma vez graças ao empenho da URAP, herdeira da Comissão de Socorro aos Presos Políticos, e a organização e mobilização do Partido Comunista Português, recordo esse dia há mais de 40 anos e revejo aqui alguns rostos que estiveram presentes. Mais do que uma tradição é obrigação responsável assumida no compromisso em honrar o legado que nos deixaram.
O reconhecimento e dever de gratidão a estes 32 heróis é extensível a todos aqueles que combateram o fascismo, particularmente os que pagaram com a vida, não só no Campo de Concentração do Tarrafal mas em todas as prisões fascistas e fora delas. Nas ruas do nosso país, nas fábricas, nos campos e nas escolas.
Todos os que sofreram os horrores da tortura, as condições sub-humanas, hoje quase impossíveis de imaginar, autores e actores das páginas da resistência à ditadura, escritas com o próprio sangue, com o sacrifício das famílias, com a dádiva das própria vidas!
Esta memória não pode mais ser apagada. Está gravada na História colectiva do Povo português, como símbolo de valores de coerência, de firmeza de carácter e da convicção que temos na democracia. Da coragem e certeza da justeza dos objectivos da luta. A contínua e necessária luta pela Liberdade.
O Tarrafal não foi apenas um pesadelo para os que lá estiveram prisioneiros. Não foi um sonho alucinante para os que cá ficaram, mulheres, filhos e amigos.
Por muito que nos custe hoje acreditar, foi real.
Quando visitei o Campo da Morte Lenta, como era chamado, senti uma grande dor e uma enorme raiva. A condição de ex-preso de outras cadeias fascistas fez-me recuar no tempo, no que vivi e no que sofri.
É impossível estabelecer paralelo e comparar os sofrimentos que passaram os homens ali presos. As condições de isolamento, o clima agreste e extremo, a falta de higiene e de salubridade. A tortura permanente a que foram submetidos.
Nem as torturas de toda a espécie, maiores que o mar Atlântico que os rodeava, foram capazes de quebrar as convicções e a vontade de vencer.
Foi um crime horrendo, friamente premeditado, criminosamente executado, que a História da Humanidade não pode apagar e que pesará para sempre na réstia de consciência dos responsáveis.
Os revolucionários barbaramente assassinados no Campo do Tarrafal,
que aqui hoje repousam, não gozaram a alegria imensa dos que, como nós, celebramos a 25 de Abril: a conquista da Liberdade. Mas quem melhor representa a esperança no futuro do que aqueles dispostos a tudo para alcançar esse sonho?
Trazem-nos até hoje a certeza reforçada nas conquistas memoráveis do 25 de Abril. Esse feito maior do Povo português que dentro de pouco tempo cumpre 50 anos. Esperemos que o comemoremos com a dignidade merecida.
Este acontecimento, fruto do sacrifício de milhares de homens e mulheres, transmitiu à maioria do Povo português, a milhões de seres humanos, a quem teve o privilegio de participar e assistir à monumental explosão de alegria, nesse processo histórico tão nobre, a obrigação de continuar lutando para que o fascismo nunca mais! Que todos os sacrifícios para que esse objectivo fosse alcançado não tenham sido em vão!
O exemplo destes heróis prova-nos que a verdade e a razão estão do lado dos que não desistem. Que do lado dos que lutam estão os que vencem.
Os que estarão sempre ao nosso lado, no nosso coração e memória, assim como das gerações futuras, num futuro de progresso, em que todos sintam a felicidade de viver em Paz, com prazer de ter vindo a este mundo.
Neste momento, nesta singela mas merecida homenagem, recordo o camarada Jaime Serra, que deixou recentemente o nosso convívio, mas cuja vida e obra há muito se tinha da lei da morte libertado.
Sinto o privilégio de ter conhecido pessoalmente alguns destes heróis. Provavelmente não consigo, nem sou capaz neste momento, de esconder a emoção, nem posso deixar de lembrar alguns camaradas. Grandes amigos que tive a felicidade de ter conhecido, com eles privado e muito aprendido, tornando mais fácil a minha vida na juventude.
As opções que vim tomando conscientemente, por querer estar deste lado e sabendo os riscos que corria, a prisão que mais tarde se confirmou, a barbárie da tortura na António Maria Cardoso, em Caxias e em Peniche, consolidaram a certeza e convicção que estava certo. Estava do lado da verdade.
Entre muitos, que nunca esquecerei, está o Francisco Miguel Duarte, também alentejano, sapateiro como o meu querido irmão, meus verdadeiros ídolos que pelo exemplo me incutiram os valores de Homens bons que tentei e tento seguir.
Tal como o Manuel Baptista Dos Reis, meu médico na adolescência e mais tarde também da minha filha e outros familiares. Que em vários momentos de aflição me socorreu.
Nesse tempo, em Grândola, o médico Manuel Reis era vítima de descriminação, impedido pelo fascismo de exercer a profissão em hospitais ou outras instituições de saúde públicas.
Nem assim não conseguiram impedir que os poderosos e servis ao fascismo a ele recorressem quando dele precisavam. Causava-me estranheza!
Por outro lado, fascinava-me a bondade com que tratava as pessoas, a generosidade com que exercia a medicina, a todos tratava por igual, fossem ricos ou pobres, poderosos ou não.
Ouvi-o, de viva voz, contar o sofrimento que ele e os seus companheiros de Tarrafal passaram. Contou-me como tinha sido preso em 1932, ainda estudante. E em 36, já como médico, partiu para Espanha com seu irmão Mário Reis para apoiar o exército republicano na luta da resistência.
Tendo sido ferido em combate, esteve em coma 20 dias. Com a proximidade das tropas de Hitler foi deportado para Portugal, onde foi detido na fronteira pela polícia política. Ficou preso no Aljube e mais tarde enviado para o Tarrafal, onde ficou até 1946 sem julgamento nem culpa formada.
Mesmo nas mais cruéis condições, ninguém conseguiu impedir que colocasse os conhecimentos de medicina ao serviço dos companheiros, salvando-os do paludismo e de outros males.
Estas acções corajosas foram a justificação para os horrorosos castigos que lhe infligiram na célebre frigideira.
Sempre o conheci como comunista. As minhas primeiras acções clandestinas a ele ficaram ligadas. Entre as numerosas responsabilidades que assumiu refiro as últimas que lhe conheci. Foi membro da URAP e deputado municipal em Grândola. Cargos que, como tarefas, acabei também por ocupar. Que melhor homenagem lhe posso prestar!
No momento sombrio em que vivemos, não só pelas pandemias naturais, mais ou menos desconhecidas pela ciência, e as artificiais, de origem oculta, criadas pelo homem, por vezes não menos difíceis de combater.
Os obstáculos criados aos contactos entre as pessoas, à livre circulação da informação, ao esclarecimento. Os jogos e os interesses vários. O combate à mentira, à calúnia, aos rótulos, a quem simplesmente, numa atitude revolucionária, faz perguntas, procura outras formas de olhar e não aceita discursos únicos nem verdades absolutas. Quem procura verdadeiramente o empenho da comunidade científica.
A distorção reaccionária e tendenciosa, função dos meios de comunicação social dominantes, torna o combate desigual e mais difícil, mas ao mesmo tempo mais empolgante, neste tempo presente em que são notórios os perigos do regresso das velhas ideias reaccionárias, racistas, xenófobas e populistas. Com elas, os seus promotores julgam estar criadas as condições para tentá-las, mais uma vez, colocar em prática.
Da nossa parte espera-se uma resposta firme! De todos os amantes do progresso, da justiça, da liberdade, dos ideais da democracia, do progresso social e da paz espera-se que não desanimemos nem deixemos ninguém para trás. Com empenho redobrado para não menosprezar os perigos mais que evidentes que proliferam à nossa volta, temos de ser fortes, criativos e unidos para vencer e seguir em frente.
As nuvens negras que teimam em não deixar de nos sobrevoar, os retrocessos
a que assistimos ultimamente são avanços e recuos que a história nos ensina. Devem ser sempre analisados na base da relação de forças em presença e em função das lutas que os trabalhadores e os Povos entenderem ter de travar.
Organizados e mobilizados, reforçando a URAP, nela participando, dando o nosso contributo e aceitando o contributo de todos, é o único caminho neste projecto transformador da sociedade.
Esta será sempre a melhor homenagem que poderemos fazer a todos os heróis que nos guiam e guiarão rumo a uma sociedade mais justa e livre.
Que vivam sempre na memória do Povo!
FASCISMO NUNCA MAIS!
VIVA A URAP!
Obrigado.
19.02.22
Intervenção de Manuel Candeias, do Conselho Directivo, na homenagem aos presos políticos mortos no Tarrafal junto ao Mausoléu, no Cemitério Alto S. João