Intervenção dia da Mulher
Iniciativa URAP-MDM-Casa do Alentejo
2 de Março de 2024
Ana Pato, Conselho Directivo da URAP
Estamos aqui a comemorar o dia 8 de março, dia internacional da mulher.
Comemoramos porque se trata de assinalar as enormes vitórias das mulheres no caminho da igualdade.
Da igualdade de direitos, mas também de oportunidades; de igualdade na lei, mas também na vida.
Mas não se trata obviamente de uma mera comemoração.
Assinalar o 8 de Março, é lutar: lutar para defender o que foi conquistado, para não deixar andar para trás.
E é também denunciar e identificar tudo o que ainda falta percorrer.
A presença da URAP, organização antifascista, nesta luta faz todo o sentido:
Porque, na sua especificidade, a luta feminista é também uma luta transversal. Ela diz respeito à própria democracia, entendida ela na sua forma mais profunda.
E porque, de facto, os ideais de igualdade de género e a libertação da mulher são contrários à própria ideologia fascista.
Olhemos para o quadro legal: a legislaçao e a doutrina do Estado Novo fizeram regredir os direitos das mulheres alcançados entretanto com a I República.
É a Constituição de 1933 que, logo após afirmar a igualdade dos cidadãos perante a lei no seu art.º 5º, vem abrir a excepção para as mulheres “pelas diferenças que resultam da sua natureza e do bem da família”.
Ora, este artigo o que vem a permitir é a institucionalização das diversas desigualdades e discriminações bem conhecidas.
À mulher competia, cito, “prestar obediência ao marido”.
Ao marido, por seu turno, competia administar não só os bens do casal, bem como próprios bens da mulher;
Para trabalhar, a mulher precisava do consentimento do marido.
O Código Civil de 1939, por exemplo, concedia ao marido o poder de obrigar a mulher a regressar ao domicílio conjugal.
A mulher não podia ter passaporte nem viajar para o estrangeiro sem a autorização do marido.
Em 1940, a concordata com a Santa Sé impedia o divórcio aos casados pela Igreja.
Contudo, ainda sob o Estado Novo, com a promulgação do Código Civil de 1966, verificam-se evoluções: a mulher passa a poder dispôr do seu salário, por exemplo, embora o marido ainda possa denunciar o contrato de trabalho da mulher.
Em 1968, a lei passa a considerar a mulher nos actos eleitorais em geral. Contudo, este direito ao voto ainda é exercido em condições desiguais face ao homem.
Ainda assim, nesta caminhada para a emancipação da mulher, as portuguesas eram das que tinham menos direitos.
Este quadro legal enforma e comprova uma concepção que procura estabelecer uma diferenciação hierárquica entre homem e mulher e a sua subjugação.
E induz, para além dos termos da lei, toda uma prática política e social de discriminação.
Sendo ideologicamente ultraconservador, o fascismo quer remeter a mulher ao lar, à família, ao papel de cuidadora e de reprodutora.
De facto, é a própria ideologia fascista que colide com a ideia de igualdade. E o quadro legal e as estruturas do Estado fornecem os instrumentos legais de opressão.
Não é, pois, por acaso, que os movimentos feministas durante o regime fascista tivessem estado associados aos movimentos democráticos de oposição, com o objectivo de derrubar o regime e instituir a democracia.
Vários grupos de mulheres foram criados no seio destes movimentos unitários e das campanhas de candidaturas oposicionistas a eleições.
E não é, portanto, por acaso que também tenham eles sentido a opressão do regime fascista.
Em 1947, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas é extinto pelo Estado Novo, já sob a presidência de Maria Lamas na sequência do sucesso e da repercussão que teve a “Exposição de Livros Escritos por Mulheres de todo o Mundo” ocorrida na Sociedade Nacional de Belas Artes, nesse mesmo ano.
É de notar, que foi neste mesmo lugar em que nos encontramos, na Casa do Alentejo, que se realizou então um jantar de solidariedade, juntado várias figuras da resistência antifascista.
O próprio MDM, herdeiro de antigas organizações femininas, lança as suas raízes na sociedade portuguesa ainda durante o fascismo, actuando numa semi-legalidade.
Exigia então a igualdade política e civil, o direito ao voto, a igualdade salarial, o acesso a todas as profissões, o ensino pré-primário oficial e gratuito e combate a humilhação e a subalternidade da mulher na família.
E em Abril de 1974, é o MDM que entrega à Junta de Salvação Nacional o Caderno Reivindicativo das Mulheres, aprovado ainda em vésperas da Revolução onde, entre outras coisas, se defende o direito à realização do aborto legal em condições de saúde para a mulher.
É verdade que as organizações de mulheres contribuíram para engrossar o caudal que levaria ao derrube da ditadura fascista.
E é também verdade que as mulheres foram participantes activas e dirigentes das organizações de resistência e das lutas sociais e que, por isso, também elas foram vítimas da violência do regime.
Recordemos, por exemplo, as lutas maioritariamente femininas das trabalhadoras do sector têxtil, corticeiras e das enfermeiras.
Recordemos, também, o papel das mulheres na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, de que a URAP é herdeira.
E recordemos todas as mulheres presas e torturadas pela polícia política.
É preciso investigar, recuperar e relevar o papel da mulher na história em geral e também na luta antifascista
Para o documentar, dando um contributo para suprir essa necessidade, a URAP editou o livro “Elas estiveram nas prisões do fascismo”, que o MDM tão bem conhece uma vez que tem dado o mote para acções conjuntas entre as nossas duas organizações.
Finalmente a revolução portuguesa derrubou o regime fascista e, com ela, num curto intervalo de tempo, a mulher conquistou direitos de grande alcance.
Até Setembro de 1974 três diplomas permitiram o acesso das mulheres a todos os cargos da carreira administrativa local, à carreira diplomática e à magistratura.
A partir de 1975 a mulher passa a ter o direito de voto sem qualquer restrição, tendo podido exercer esse direito já nas eleições para a Assembleia Constituinte.
Em 1976 é abolido o direito do marido abrir a correspondência da mulher.
A nova Constituição passa a garantir a igualdade de oportunidades de tratamento no trabalho e afirma que na família o homem e a mulher têm os mesmos direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e no respeitante à educação dos filhos.
Entre várias conquistas, é reconhecido o valor social da maternidade, assegurando-se o direito, antes e depois do parto, a uma licença sem perda de remuneração ou de outras vantagens
E o direito ao divórcio passa a ser extensivo às uniões canónicas.
Como consequência do derrube do fascismo, as mulheres portuguesas viam, assim, consagradas nas leis reivindicações pelas quais tinham lutado ao longo de muitos anos
Mais há ainda muito caminho trilhar: tanto no que diz respeito à defesa da democracia, nas múltiplas ameaças que enfrenta, como no que diz respeito à conquista da igualdade entre homens e mulheres. Lutas que, como bem sabemos, estão intimamente ligadas.
E a consagração legal da igualdade não basta, por si, para que as discriminções reais sejam eliminadas.
Se não, vejamos:
- As mulheres são aquelas que são mais afectadas pela pobreza
- São as principais vítimas de exploração e violência sexual e de violência doméstica: (Em Portugal, em cada 10 pessoas vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, 9 são mulheres e 1 é homem).
- No nosso país, as mulheres são maioritárias nas conclusões das licenciaturas, dos mestrados e ainda nos doutoramentos (quase 60% se considerarmos as licenciaturas).
- Contudo, a taxa de desemprego recai sobretudo sobre elas
- E os homens continuam a receber salários mais altos do que as mulheres, independentemente do setor de atividade económica, da profissão, do nível de qualificação profissional, das habilitações literárias ou do tempo de antiguidade no emprego
- O emprego das mulheres a tempo parcial superou o dos homens, o que resulta em menores rendimentos no seu presente, menores pensões no seu futuro e menores probabilidades de subida na carreira ao longo da sua vida profissional.
- A tarefa de cuidador é sobretudo feminina: a percentagem de população inativa, entre os 20 e os 64 anos, devido “a responsabilidades de cuidar” tem sido sempre significativamente superior entre as mulheres do que entre os homens, dizem os estudos sobre a realidade nacional.
- O tempo despendido em tarfas domésticas também é superior para as mulheres: considerando coisas como preparar as refeições, tratamento da roupa, limpeza da casa, organização de actividades de lazer; os homens só superam as mulheres nos arranjos e no pagamento das contas. As estatísticas mostram como, em geral, ainda temos marcas do passado.
- Continua a haver estereótipos sociais e aqueles a que as mulheres estão sujeitas são mais prejudiciais face aqueles que se associam aos homens.
E se olharmos para vários órgãos de poder , as diferenças aqui também são grandes: a representatividade actual das mulheres no poder local é de 11% e na Assembleia da República 37%.
Mas introduzo este indicador precisamente para poder fazer uma ressalva. O escasso acesso das mulheres a cargos de poder político é, antes de mais, um reflexo das desigualdades na sociedade e na vida. O acesso a cargos de poder pelas mulheres não é, contudo, como nós aqui bem sabemos, uma garantia de políticas democráticas e da promoção da igualdade.
E este é um aspecto importante da luta ideológica que enfrentamos no contexto da emancipação feminina.
Não se alcança a igualdade meramente por se ter mulheres em lugares de poder. Não ficamos mais próximas da igualdade se for uma mulher a aplicar políticas que ferem as mulheres e aprofundam as desigualdades.
Quem se deixa enganar achando que ter mulheres como chefes de governo, sendo eles governos de direita ou de extrema-direita, é sintoma de avanços no sentido da igualdade, desengane-se.
Não há fascismo feminista.
É preciso olhar não para a caras, mas para os conteúdos. E os projectos conservadores e reacionários não são portadores de igualdade.
Portanto, o problema não só é político como tem uma marca de classe.
E é este seu conteudo político e de classe que precisamos relevar.
Não o vamos deixar esvaziar.
O dia 8 de Março não é apenas o dia da mulher; ele é o dia da mulher trabalhadora.
Uma sociedade organizada sobre as desigualdades não pode eliminar a desigualdade de género.
Só uma sociedade verdadeiramente democrática, que entenda a democracia para além dos seus aspectos formais e a desenvolva nos seus sentidos político, cultural, económico e social, uma democracia que, antes do mais, seja democrática na distribuição da riqueza criada, só uma sociedade assim será capaz de eliminar as discriminações.
Por tudo isto, a luta das mulheres não é uma luta isolada e está organicamente ligada à luta pelos salários, pela habitação, pela saúde, pela educação, pela paz, contra a guerra, contra o racismo, a xenofobia e o fascismo.
Quando o salário não chega para pagar uma casa, é o direito ao divórcio que não está garantido na vida.
Quando os horários de trabalho estão desregulados, é o direito a cuidar dos filhos que não está garantido.
Quando encerram maternidades por desinvestimento no SNS, é a saúde reprodutiva que não está garantida.
Quando não há dinheiro para pagar as propinas, é o acesso à educação que não está garantido.
Quando há sobrecarga com o trabalho doméstico e não sobra tempo, é o direito ao desporto ou à participação política que não estão garantidos.
Os exemplos podiam continuar.
As próximas eleições legislativas dia 10 de Março é um momento de levar a luta das mulheres até ao voto. Nelas está em jogo derrotarmos projectos do passado, independemente da roupagem mais ou menos moderna com que se apresentem, e darmos força a projectos consequentes de emancipação social.
A emancipação feminina, a igualdade entre homens e mulheres, é reconhecidamente uma questão de direitos humanos.
Não se pode falar de democracia e de liberdade plenas quando assistimos a várias formas de discriminação, violência e opressão sobre metade da humanidade.
Por isso não é de estranhar que o movimento antifascista e o movimento feminista sejam aliados históricos e continuarão a sê-lo nesta batalha pelas transformações da sociedade que se impõem.