Texto de António Borges Coelho para a inauguração do Museu Nacional da Resistência e Liberdade

Os museus guardam os objectos e as memórias que marcaram o nosso quotidiano, a nossa história e a do Mundo, prendem os olhos e os sentidos na beleza das artes, exercitam e alargam os horizontes da nossa cultura e humanidade. Mas este Museu da Resistência de Peniche é um museu singular, um museu destinado a resgatar a memória daqueles que ousaram oferecer a sua vida para resgatar a liberdade roubada durante quarenta e oito anos de repressão e obscurantismo.
Os presos chegavam de todos os lados e de todos os grupos sociais. Sepultavam-nos dentro das grossas paredes da Fortaleza que assentam sobre o mar. Ali ficavam. Os anos sucediam-se aos anos. Sem notícias, sem o alimento dos acontecimentos da vida social e familiar que ocorria lá fora, era um tempo sem sinais, um tempo quase sem memória, Os dias sucediam-se aos dias ao ritmo dos apitos e da formatura à porta das celas.
O mar bramia por baixo da fortaleza, respirava com ruído elevando pelas frinchas altos jactos de água. Era o companheiro fiel dos dias.

“Os nossos olhos são asas de gaivota
roçando a flor das águas afagando-as
em cada círculo ou rota
ou pousados balouçando
seguindo o movimento
deste mar tão brando
e logo tão violento.”

Na tarde de 20 de Maio de 1962 saiu da Fortaleza um preso com duas malas nas mãos e seis anos e meio de cárcere, os guardas e o chefe acompanharam-no até ao fim do passadiço. Uma mulher do Largo aproximou-se sem medo. -Está a sair da Fortaleza? -Sim. -Deixe-me dar-lhe um abraço.
O preso pousou as malas e abraçaram-se profundamente.
Nunca mais esqueceu aquele abraço. Hoje alarga-o a todo o povo de Peniche

António Borges Coelho

27 de Abril de 2024

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Herculana Velez URAP inauguracao mnrlIntervenção de Herculana Velez, filha do preso político Joaquim Diogo Velez, na inauguração popular no Museu Nacional da Resistência e Liberdade


Desde já quero agradecer a todos a vossa presença
Viemos à cadeia dos homens que não cometeram crimes

Fomos meninos e meninas
Não nascemos adultos, tonámo-nos adultos em tempo de ser criança.

Tinha 3- 4 anos e durante 4 anos o meu pai como funcionário do PCP e a minha mãe sua inseparável companheira e eu de tenra idade mergulhámos na clandestinidade.
Durante 4 anos não convivi com nenhuma criança, se a curiosidade infantil me impelisse a assomar a uma janela poderia denunciar algum sinal que comprometesse a segurança clandestina da família e de outros camaradas.
Até que ambos foram presos. A minha mãe saiu ao fim de um ano o meu pai ao fim de 9.

9 anos passados em função desta cadeia, ora a caminhar a fim de visitar o meu pai, ora assistindo às lutas travadas na entrada desta fortaleza pelas companheiras e mães principalmente mas também outros familiares exigindo direitos como p. ex. saber porque determinado preso umas vezes, outras o grupo todo não tinham direito a visitas etc, etc.

Peço-vos que ao olharem para mim não me vejam como uma mulher com 70 anos, vejam uma menina com 7, 8, 10, 15 anos ali na entrada daquele portão nos mais rigorosos invernos ou nos mais tórridos verões.

O frio, o vento, a chuva, nós crianças apenas amparados pelas muralhas que eram as mães ainda assim não suficientes para que não enregelássemos. Lá em baixo o mar furioso batia nas rochas daquela pequena praia com tanta força que as ondas se misturavam com a chuva e nós à espera que portão abrisse. Se o horário da visita estava marcado para as 14 horas , quanto pior estivesse o tempo mais a entrada se atrasava, 15, 20, 30 minutos ou sem mais nem menos e sem explicação a visita era cancelada.


Se eu tinha medo?
Sim sentia medo mas não o demostrava, nem o medo nem as lágrimas que são reacção natural numa criança, a menina adulta que eu era sabia que esses sinais podiam ser aproveitados pelos Pides ou os guardas da cadeia e usados junto do meu pai para o vergar para o fazer vacilar e desmoralizar que perante o conhecimento do sofrimento da filha ao ver o pai preso pudessem dizer-lhe: não tem vergonha de submeter a sua filha a tal sofrimento?


Nunca chorei nunca demonstrei medo nunca falei, eu não falava nem para dizer o nome!


Eu tinha consciência que o que me trazia a esta cadeia não era a mão da minha mãe eu sabia o motivo da prisão do meu pai porque estava encarcerado sabia que o crime pelo qual foi condenado foi o de lutar para que a filha e todos os filhos do povo português tivesse acesso aos mais elementares direitas como a educação a saúde a alimentação. Os criminosos eram aqueles que o tinham prendido.


O que me trazia a esta cadeia era o regime fascista era o governo da ditadura era a falta de liberdade, a ditadura que alimentava a miséria e a ignorância. E a quem se lhe opunha torturava, prendia e matava

Se esta menina ficou marcada pela vida clandestina, pelos sacrifícios e a luta dos pais resistentes antifascistas, sem dúvida!

Esta menina que não brincou o seu mundo era à dimensão de 4 paredes a existência de outros meninos só conhecida pelas vidraças fechadas da janela e sobretudo a ausência de ambos os pais marcaram no mais profundo do meu ser a solidão e o silêncio que nenhuma criança deveria conhecer.

Estou hoje aqui mas algumas crianças não poderam aqui chegar, como eu viveram o mesmo terror mas por diversas razões ficaram pelo caminho, meninos e meninas quer pela fome ou falta de assistência médica pereceram, ficando nas nossas memórias presto-lhe a minha mais sentida homenagem.
A todos os homens e mulheres que abnegadamente corajosamente se entregaram à luta contra o fascismo pagando com longos anos de prisão deixo o mais profundo agradecimento louvando as suas vidas e o seu legado.

Quero deixar aqui também o meu agradecimento e homenagear o povo de Peniche que vencendo o medo e ameaças da Pide prestou auxílio e uma enorme solidariedade para com as famílias dos presos políticos em condições económicas mais desfavorecidas abrindo as portas das suas casas para que nelas pernoitássemos.

Eu e a minha mãe ficamos em algumas dessas casas.
Arrepia saber que houve vozes a quererem que este local se transformasse num hotel de luxo, como seria repousar sobre os gritos dos resistentes antifascistas aqui torturados?

Por isso quero agradecer a todos os que se levantaram, manifestaram e trabalharam para que esta fortaleza pudesse ser hoje o testemunho vivo das marcas do fascismo através de todas as histórias aqui contadas, exposições, testemunhos, possam servir à nossa e às futuras gerações de guião para que nunca mais homem nenhum possa ser privado da sua liberdade, torturado ou assassinado por delito de opinião que os mais de 2 mil homens cujos nomes estão aqui gravados sirvam de exemplo a todos nós e nos alertem para que as várias direitas que aí surgem, os herdeiros do fascismo saudosos do passado voltem a matar a liberdade.

Fascismo nunca mais!!

 

27 de Abril de 2024

 

 

 

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Jose Pedro Soares URAP inauguracao MNRLIntervenção de José Pedro Soares, coordenador da URAP, na inauguração popular no Museu Nacional da Resistência e Liberdade

Estimados amigos, companheiros, camaradas ex-presos políticos, companheiras, filhos, netos e outros familiares, amigos, democratas e antifascistas que hoje aqui vieram à Fortaleza de Peniche para participar neste ato popular de inauguração do Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL).


Bem-vindos. Hoje é um dia, para erguermos de novo, os nossos cravos de abril.

Quando não se desiste e, se luta por causas justas como esta, pode demorar tempo, mas a força da razão e da luta acabam por vencer.
Assim aconteceu na Fortaleza de Peniche, com a transformação de uma das mais sinistras cadeias do fascismo, neste moderno Museu Nacional Resistência e Liberdade.


O Museu que hoje e no futuro continuará a representar a tenacidade e a luta contra o medo, a opressão e o arbítrio. Um local de memória e grande símbolo da resistência antifascista dos portugueses.
Há precisamente 50 anos, nas primeiras horas do dia 27 de abril de 1974, vencidas as resistências de Spínola que não queria a libertação de todos os presos políticos, em Peniche tal como em Caxias, a vontade do povo foi mais forte, as portas destas cadeias finalmente abriram-se para, entre aplausos e vivas à liberdade e ao 25 de Abril, saudar a libertação dos presos políticos do fascismo.


Foram inesquecíveis esses dias 25, 26 e 27 de abril. Quando os jovens militares do MFA - Movimento das Forças Armadas e o povo se mobilizavam para avançar com a mais bonita e a mais avançada das Revoluções que Portugal conheceu.
Aqui em Peniche, a multidão foi enchendo todo o espaço frente à Fortaleza e ali permaneceu sem arredar pé, para receber os que aqui dentro, aguardando a sua libertação, afirmavam para que dúvidas não houvesse, ou “saem todos, ou nenhum”.


No Memorial, erguido à entrada, estão gravados os mais de 2500 nomes de antifascistas que por aqui passaram nesses anos terríveis de repressão e maus tratos, alguns camaradas muitos anos das suas vidas.


Lutaram e sonharam com o fim do fascismo, o derrube do regime opressor e o momento em que terminariam as prisões políticas e se alcançaria a liberdade.
Finalmente esse dia chegou e os que aqui estavam atrás das grades foram recebidos pela multidão no seguimento da iniciativa militar e popular vitoriosa no 25 de Abril de 1974.


Os aplausos, vivas à liberdade com que fomos recebidos há 50 anos, foram certamente também para eles, os milhares de camaradas que anos e anos, meses, dias e noites infindáveis que aqui passaram, não desistiram e por essa sua coragem e exemplo se tornaram os elos mais fortes e coerentes que ligaram gerações sucessivas de antifascistas.


Não temos receio em evocar e tornar grande aquilo que na verdade foi maior, mais justo, mais esperado, a liberdade desses dias que nos arrastou para momentos inesquecíveis, dias que o tempo deixou gravado e que hoje aqui, e no futuro, outros continuarão a celebrar porque foi também para o futuro que abril foi realizado.
E não podemos esquecer. Quando o largo frente à Fortaleza se encheu para nos receber, logo se afirmava, que “este local tem que no futuro ser transformado num grande Museu da Resistência”.


Passados 50 anos, aqui estamos, para celebrar a concretização desse apelo, a concretização do direito à memória, para evocar a resistência à opressão, à luta contra a guerra e o colonialismo, pela democracia, pela liberdade, por um mundo mais justo e liberto da exploração, porque foi esse o combate, foram essas as causas porque se bateram os que, entre 1934 e 1974, aqui estiveram encarcerados.


Acontece que já em setembro de 1976, o Governo de então, tinha decidido a criação do Museu da Resistência na Fortaleza de Peniche, embora se tivesse ficado apenas pelo anúncio e nada mais foi feito para a sua concretização.


Passaram-se anos e certa altura, a URAP, e a Câmara Municipal de Peniche, criaram condições para haver espaços visitáveis na Fortaleza.
Iniciou-se também o levantamento dos presos num trabalho realizado pela URAP nos arquivos da Torre do Tombo no seguimento do qual foi sugerido a criação de um Memorial com o nome de todos presos bem a colocação de peça escultórica para os homenagear.


Assim nasceu e foi erguida a obra do escultor de José Aurélio com uma simbologia muito simples, a confrontação do aço com o espelho de água, da luta e da resistência ao regime repressivo, a ânsia da vida e da Liberdade, a que se juntou a expressão de Professor Borges Coelho «Disseram não.. para que a água da vida corresse limpa»


O tempo corria e em setembro de 2016 tudo se precipitava, quando fomos surpreendidos pela comunicação social que o Governo tencionava incluir a Fortaleza de Peniche na lista dos monumentos a concessionar a privados para fins hoteleiros.


Este anúncio foi um choque para os ex-presos políticos, as famílias, os democratas e antifascistas.


Desde logo se desenvolveu o largo movimento de opinião democrática que de imediato contestou essa intenção do Governo dirigindo-se à Assembleia da República com uma petição que recolheu em poucos dias mais de dez mil assinaturas, exigindo uma posição clara desse órgão representativo da democracia, ao mesmo que um conjunto de ex-presos políticos se dirigiam ao Governo exigindo que recuasse nessa sua injusta e descabida intenção.


Foi esse largo movimento de opinião democrática que se manteve nestes anos mobilizado, que venceu dúvidas, impasses, incertezas e fez com que se avançasse e que hoje, aqui nos juntemos, mas desta vez já para celebrar esta vitória do povo, da unidade e da memória.


Por todo este nosso envolvimento, fomos chamados a participar e ajudar a elaborar a proposta e do objeto do que se pretendia. Entretanto avançaram obras, projetos, concursos e em abril de 2017 o Governo aqui reunido decidiu, com base nessas propostas, a criação do Museu Nacional Resistência e Liberdade.

Por isso, é também hoje o dia e o momento para felicitar, todas e todos, os que sonharam, propuseram e não deixaram que a memória do local fosse alterada, esquecida, branqueado o fascismo e os seus crimes.


Lembrar ainda os que nestes seis anos trabalharam nos projetos, nas obras, nas decisões, nos estudos, na elaboração de conteúdos para se erguer o Museu.
Lembramos a Dra. Paula Silva, da Direção Geral do Património Cultural, sua Diretora aquando foi tomada a decisão, o Arquiteto João Barros Matos que concebeu o projeto e o plano das obras do Museu, a Dra. Teresa Albino, técnica superior que acompanhou o processo desde a primeira hora e a Dra. Aida Rechena, Diretora do Museu, cujo empenho, determinação e competência todos lhe reconhecem


Não podendo enumerar todos os que contribuíram para o notável empreendimento, queremos, entretanto, deixar público agradecimento, ao camarada Domingos Abrantes e ao Professor Fernando Rosas, para ambos, o mais elevado apreço pela relevante contribuição no estudo e elaboração de conteúdos para a instalação do Museu Nacional Resistência e Liberdade


Hoje, esta inauguração, representa assim uma importante vitória dos antifascistas portugueses, do povo, e da memória e para continuarmos afirmar:
25 de Abril sempre,
Fascismo nunca mais!

 

27 de Abril de 2024

 

 

 

 

 

 

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Intervenção dia da Mulher
Iniciativa URAP-MDM-Casa do Alentejo
2 de Março de 2024
Ana Pato, Conselho Directivo da URAP

 

Estamos aqui a comemorar o dia 8 de março, dia internacional da mulher.

Comemoramos porque se trata de assinalar as enormes vitórias das mulheres no caminho da igualdade.

Da igualdade de direitos, mas também de oportunidades; de igualdade na lei, mas também na vida.

Mas não se trata obviamente de uma mera comemoração.

Assinalar o 8 de Março, é lutar: lutar para defender o que foi conquistado, para não deixar andar para trás.

E é também denunciar e identificar tudo o que ainda falta percorrer.

A presença da URAP, organização antifascista, nesta luta faz todo o sentido:

Porque, na sua especificidade, a luta feminista é também uma luta transversal. Ela diz respeito à própria democracia, entendida ela na sua forma mais profunda.

E porque, de facto, os ideais de igualdade de género e a libertação da mulher são contrários à própria ideologia fascista.

 

Olhemos para o quadro legal: a legislaçao e a doutrina do Estado Novo fizeram regredir os direitos das mulheres alcançados entretanto com a I República.

É a Constituição de 1933 que, logo após afirmar a igualdade dos cidadãos perante a lei no seu art.º 5º, vem abrir a excepção para as mulheres “pelas diferenças que resultam da sua natureza e do bem da família”.

Ora, este artigo o que vem a permitir é a institucionalização das diversas desigualdades e discriminações bem conhecidas.

À mulher competia, cito, “prestar obediência ao marido”.

Ao marido, por seu turno, competia administar não só os bens do casal, bem como próprios bens da mulher;

Para trabalhar, a mulher precisava do consentimento do marido.

O Código Civil de 1939, por exemplo, concedia ao marido o poder de obrigar a mulher a regressar ao domicílio conjugal.

A mulher não podia ter passaporte nem viajar para o estrangeiro sem a autorização do marido.

Em 1940, a concordata com a Santa Sé impedia o divórcio aos casados pela Igreja.

Contudo, ainda sob o Estado Novo, com a promulgação do Código Civil de 1966, verificam-se evoluções: a mulher passa a poder dispôr do seu salário, por exemplo, embora o marido ainda possa denunciar o contrato de trabalho da mulher.

Em 1968, a lei passa a considerar a mulher nos actos eleitorais em geral. Contudo, este direito ao voto ainda é exercido em condições desiguais face ao homem.

Ainda assim, nesta caminhada para a emancipação da mulher, as portuguesas eram das que tinham menos direitos.

Este quadro legal enforma e comprova uma concepção que procura estabelecer uma diferenciação hierárquica entre homem e mulher e a sua subjugação.

E induz, para além dos termos da lei, toda uma prática política e social de discriminação.

Sendo ideologicamente ultraconservador, o fascismo quer remeter a mulher ao lar, à família, ao papel de cuidadora e de reprodutora.

De facto, é a própria ideologia fascista que colide com a ideia de igualdade. E o quadro legal e as estruturas do Estado fornecem os instrumentos legais de opressão.

 

Não é, pois, por acaso, que os movimentos feministas durante o regime fascista tivessem estado associados aos movimentos democráticos de oposição, com o objectivo de derrubar o regime e instituir a democracia.

Vários grupos de mulheres foram criados no seio destes movimentos unitários e das campanhas de candidaturas oposicionistas a eleições.

E não é, portanto, por acaso que também tenham eles sentido a opressão do regime fascista.

Em 1947, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas é extinto pelo Estado Novo, já sob a presidência de Maria Lamas na sequência do sucesso e da repercussão que teve a “Exposição de Livros Escritos por Mulheres de todo o Mundo” ocorrida na Sociedade Nacional de Belas Artes, nesse mesmo ano.

É de notar, que foi neste mesmo lugar em que nos encontramos, na Casa do Alentejo, que se realizou então um jantar de solidariedade, juntado várias figuras da resistência antifascista.

O próprio MDM, herdeiro de antigas organizações femininas, lança as suas raízes na sociedade portuguesa ainda durante o fascismo, actuando numa semi-legalidade.

Exigia então a igualdade política e civil, o direito ao voto, a igualdade salarial, o acesso a todas as profissões, o ensino pré-primário oficial e gratuito e combate a humilhação e a subalternidade da mulher na família.

E em Abril de 1974, é o MDM que entrega à Junta de Salvação Nacional o Caderno Reivindicativo das Mulheres, aprovado ainda em vésperas da Revolução onde, entre outras coisas, se defende o direito à realização do aborto legal em condições de saúde para a mulher.

É verdade que as organizações de mulheres contribuíram para engrossar o caudal que levaria ao derrube da ditadura fascista.

E é também verdade que as mulheres foram participantes activas e dirigentes das organizações de resistência e das lutas sociais e que, por isso, também elas foram vítimas da violência do regime.

Recordemos, por exemplo, as lutas maioritariamente femininas das trabalhadoras do sector têxtil, corticeiras e das enfermeiras.

Recordemos, também, o papel das mulheres na Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, de que a URAP é herdeira.

E recordemos todas as mulheres presas e torturadas pela polícia política.

É preciso investigar, recuperar e relevar o papel da mulher na história em geral e também na luta antifascista

Para o documentar, dando um contributo para suprir essa necessidade, a URAP editou o livro “Elas estiveram nas prisões do fascismo”, que o MDM tão bem conhece uma vez que tem dado o mote para acções conjuntas entre as nossas duas organizações.

 

Finalmente a revolução portuguesa derrubou o regime fascista e, com ela, num curto intervalo de tempo, a mulher conquistou direitos de grande alcance.

Até Setembro de 1974 três diplomas permitiram o acesso das mulheres a todos os cargos da carreira administrativa local, à carreira diplomática e à magistratura.

A partir de 1975 a mulher passa a ter o direito de voto sem qualquer restrição, tendo podido exercer esse direito já nas eleições para a Assembleia Constituinte.

Em 1976 é abolido o direito do marido abrir a correspondência da mulher.

A nova Constituição passa a garantir a igualdade de oportunidades de tratamento no trabalho e afirma que na família o homem e a mulher têm os mesmos direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e no respeitante à educação dos filhos.

Entre várias conquistas, é reconhecido o valor social da maternidade, assegurando-se o direito, antes e depois do parto, a uma licença sem perda de remuneração ou de outras vantagens

E o direito ao divórcio passa a ser extensivo às uniões canónicas.

Como consequência do derrube do fascismo, as mulheres portuguesas viam, assim, consagradas nas leis reivindicações pelas quais tinham lutado ao longo de muitos anos

Mais há ainda muito caminho trilhar: tanto no que diz respeito à defesa da democracia, nas múltiplas ameaças que enfrenta, como no que diz respeito à conquista da igualdade entre homens e mulheres. Lutas que, como bem sabemos, estão intimamente ligadas.

E a consagração legal da igualdade não basta, por si, para que as discriminções reais sejam eliminadas.

Se não, vejamos:

- As mulheres são aquelas que são mais afectadas pela pobreza

- São as principais vítimas de exploração e violência sexual e de violência doméstica: (Em Portugal, em cada 10 pessoas vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, 9 são mulheres e 1 é homem).

- No nosso país, as mulheres são maioritárias nas conclusões das licenciaturas, dos mestrados e ainda nos doutoramentos (quase 60% se considerarmos as licenciaturas).

- Contudo, a taxa de desemprego recai sobretudo sobre elas

- E os homens continuam a receber salários mais altos do que as mulheres, independentemente do setor de atividade económica, da profissão, do nível de qualificação profissional, das habilitações literárias ou do tempo de antiguidade no emprego

- O emprego das mulheres a tempo parcial superou o dos homens, o que resulta em menores rendimentos no seu presente, menores pensões no seu futuro e menores probabilidades de subida na carreira ao longo da sua vida profissional.

- A tarefa de cuidador é sobretudo feminina: a percentagem de população inativa, entre os 20 e os 64 anos, devido “a responsabilidades de cuidar” tem sido sempre significativamente superior entre as mulheres do que entre os homens, dizem os estudos sobre a realidade nacional.

- O tempo despendido em tarfas domésticas também é superior para as mulheres: considerando coisas como preparar as refeições, tratamento da roupa, limpeza da casa, organização de actividades de lazer; os homens só superam as mulheres nos arranjos e no pagamento das contas. As estatísticas mostram como, em geral, ainda temos marcas do passado.

- Continua a haver estereótipos sociais e aqueles a que as mulheres estão sujeitas são mais prejudiciais face aqueles que se associam aos homens.

E se olharmos para vários órgãos de poder , as diferenças aqui também são grandes: a representatividade actual das mulheres no poder local é de 11% e na Assembleia da República 37%.

Mas introduzo este indicador precisamente para poder fazer uma ressalva. O escasso acesso das mulheres a cargos de poder político é, antes de mais, um reflexo das desigualdades na sociedade e na vida. O acesso a cargos de poder pelas mulheres não é, contudo, como nós aqui bem sabemos, uma garantia de políticas democráticas e da promoção da igualdade.

E este é um aspecto importante da luta ideológica que enfrentamos no contexto da emancipação feminina.

Não se alcança a igualdade meramente por se ter mulheres em lugares de poder. Não ficamos mais próximas da igualdade se for uma mulher a aplicar políticas que ferem as mulheres e aprofundam as desigualdades.

Quem se deixa enganar achando que ter mulheres como chefes de governo, sendo eles governos de direita ou de extrema-direita, é sintoma de avanços no sentido da igualdade, desengane-se.

Não há fascismo feminista.

É preciso olhar não para a caras, mas para os conteúdos. E os projectos conservadores e reacionários não são portadores de igualdade.

Portanto, o problema não só é político como tem uma marca de classe.

E é este seu conteudo político e de classe que precisamos relevar.

Não o vamos deixar esvaziar.

O dia 8 de Março não é apenas o dia da mulher; ele é o dia da mulher trabalhadora.

Uma sociedade organizada sobre as desigualdades não pode eliminar a desigualdade de género.

Só uma sociedade verdadeiramente democrática, que entenda a democracia para além dos seus aspectos formais e a desenvolva nos seus sentidos político, cultural, económico e social, uma democracia que, antes do mais, seja democrática na distribuição da riqueza criada, só uma sociedade assim será capaz de eliminar as discriminações.

Por tudo isto, a luta das mulheres não é uma luta isolada e está organicamente ligada à luta pelos salários, pela habitação, pela saúde, pela educação, pela paz, contra a guerra, contra o racismo, a xenofobia e o fascismo.

Quando o salário não chega para pagar uma casa, é o direito ao divórcio que não está garantido na vida.
Quando os horários de trabalho estão desregulados, é o direito a cuidar dos filhos que não está garantido.
Quando encerram maternidades por desinvestimento no SNS, é a saúde reprodutiva que não está garantida.
Quando não há dinheiro para pagar as propinas, é o acesso à educação que não está garantido.
Quando há sobrecarga com o trabalho doméstico e não sobra tempo, é o direito ao desporto ou à participação política que não estão garantidos.
Os exemplos podiam continuar.

As próximas eleições legislativas dia 10 de Março é um momento de levar a luta das mulheres até ao voto. Nelas está em jogo derrotarmos projectos do passado, independemente da roupagem mais ou menos moderna com que se apresentem, e darmos força a projectos consequentes de emancipação social.

A emancipação feminina, a igualdade entre homens e mulheres, é reconhecidamente uma questão de direitos humanos.

Não se pode falar de democracia e de liberdade plenas quando assistimos a várias formas de discriminação, violência e opressão sobre metade da humanidade.

Por isso não é de estranhar que o movimento antifascista e o movimento feminista sejam aliados históricos e continuarão a sê-lo nesta batalha pelas transformações da sociedade que se impõem.

 

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Amigos, companheiros, camaradas,

«Não temos deportados por delitos políticos, nem exilados forçados!» Assim falava a 17 de Maio de 1945, na Assembleia Nacional fascista, aos seus assustados correligionários, o ditador Salazar.
E, no entanto, no cemitério do Tarrafal ficaram os corpos de 32 dos prisioneiros que ali morreram vítimas dos maus-tratos sofridos.
Só depois do 25 de Abril de 1974, foi possível trazê-los de regresso para terra portuguesa. Corpos que aqui se encontram desde 1978, neste Mausoléu Memorial erigido por subscrição pública e no qual estão inscritos os seus nomes.
Justiça foi feita e o exemplo da sua luta e da sua resistência é estímulo para a luta presente e para a luta futura de aprofundamento e reforço das liberdades e da democracia.

Já não se encontra entre nós nenhum dos sobreviventes do Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, mais conhecido como o «Campo da Morte Lenta».
O Tarrafal funcionou durante 17 anos, entre 1936 e 1954, período durante o qual foram encarcerados, torturados, mortos, 340 presos, totalizando 2.000 anos, 11 meses e 5 dias de perda da liberdade, a milhares de quilómetros de Portugal.
Foi reaberto em 1962, desta vez destinado aos patriotas dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Foi encerrado definitivamente depois da Revolução de Abril, em 1974.

Alguém escreveu que, e cito, «a nova sociedade democrática leu-os e ouvi-os durante dois ou três anos, os dezassete meses revolucionários de 1974-75 e qualquer coisa mais, e depois remeteu-os ao silêncio».
Connosco, na URAP, a União de Resistentes Antifascistas Portugueses, nunca os deixámos, nem deixaremos, cair no esquecimento.
Sobre o Campo de Concentração do Tarrafal, já se tem dito e escrito alguma coisa, mas nunca se dirá e escreverá tudo o que haverá para dizer.
O Tarrafal não foi nunca, nem deverá ser, um assunto que só dissesse respeito aos que por lá passaram. Por isso, repito, aqui estamos.
O campo destinava-se a liquidar, em condições menos expostas, uma boa parte dos elementos mais firmes da luta contra o fascismo. O Seixas, chefe dos pides do campo, dizia: «Tudo o que veio para aqui foi para morrer, lapas e tudo».

Havia o clima, os trabalhos forçados - a arrancar pedra, partir pedra, carregar pedra -, a água inquinada, a falta de higiene, o paludismo, a ausência de assistência médica, a desumanidade, o mal, o escrever à família uma carta ou um postal censurado de 40 em 40 dias. Havia a «frigideira», a tortura, os espancamentos.

E havia a resistência e a luta heróica. Havia a Comissão de Campo clandestina e unitária, as tentativas de fuga, a Universidade Popular, a formação política, a circulação de informação clandestina.
Como disse em entrevista, Sérgio Vilarigues, 46 meses de Tarrafal, já depois de ter cumprido a pena, «Os presos são assim, há quem diga que nas prisões não se luta, mas eu digo-te: luta-se e de que maneira!
Mesmo no campo de concentração?
Claro, quantas lutas, e vitoriosas, lá fizemos. Eram combates pelos nossos direitos, se assim se pode dizer de um sítio onde é quase caricato falar de direitos, mas sobretudo pela nossa sobrevivência.»

Amigos, companheiros, camaradas,
Esquecer ou branquear o fascismo representa um perigo real, e um perigo de hoje, para os direitos e liberdades democráticas conquistados.
Alguns académicos, analistas, comentadores, partidos políticos, procuram transmitir a ideia de que em Portugal não existiu fascismo, mas somente um regime autoritário, com um ideário conservador, cristão e corporativista, liderado por Salazar, uma figura «paternalista», o que sugere uma imagem de «brandura» em comparação com os «ditadores».

Ou seja, acabam muitas vezes por branquear o fascismo português e a sua natureza e prática bárbara e terrorista.
Como disse alguém: «Na grande operação de branqueamento da ditadura não é a utilização de especulações teóricas elaboradas em gabinetes que pode alterar a sua justa definição como ditadura fascista. Assim foi considerada pelo povo. Assim ficará na história». Nada mais verdadeiro!
Há hoje em Portugal uma nova geração que não conheceu – felizmente – o peso da opressão policial, da repressão política, das prisões e torturas, da censura, da miséria, da emigração massiva e das guerras impostas pela política imperial do fascismo.
Não viveu – felizmente – a abominação das concepções da ideologia fascista ma sua versão salazarista que a ditadura quis impor ao nosso povo, matraqueando-a nas escolas, martelando-a na comunicação social amordaçada.
Não podemos deixar que o apagamento do que foi a ditadura, e a reabilitação dos seus responsáveis e da sua política abra caminho ao ressurgimento de ideologias fascistas e de práticas políticas nelas inspiradas, em contraponto com as campanhas de descrédito, desvalorização e degradação da democracia.

No ano em que comemoramos os 50 anos do derrube do fascismo de Salazar e Caetano e a Revolução de Abril, defender a liberdade e os direitos democráticos significa cada vez mais exercer os direitos de manifestação, de expressão, de reunião, o direito à greve e à propaganda política, a todos os direitos conquistados. E defender não só a democracia política, mas também a social, a económica e a cultural. Para que não haja fascismo. Nunca mais.
No próximo dia 10 de Março, quando votarmos, é também, e sobretudo, o que aqui foi dito que está em causa.

 

17 de Fevereiro de 2024

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A URAP foi fundada a 30 de Abril de 1976, reunindo nas suas fileiras um largo núcleo de antifascistas com intervenção destacada durante a ditadura fascista. Mas a sua luta antifascista vem de mais longe.
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União de Resistentes Antifascistas Portugueses - Av. João Paulo II, lote 540 – 2D Loja 2, Bairro do Condado, Marvila,1950-157, Lisboa