Intervenção de Filipe Diniz na sessão de homenangem a Fernando Lopes Graça
no dia 14 de Dezembro de 2012, em Lisboa, promovida pela URAP em parceria com a Biblioteca-Museu República e Resistência
no âmbito do ciclo Rostos da Resistência
«Quando em 2006 celebrámos o centenário do seu nascimento muitos de nós partilhávamos uma preocupação: embora Lopes-Graça fosse já indiscutivelmente reconhecido como uma das figuras maiores do século XX, existia ao mesmo tempo a consciência de que a obra, a vida, o exemplo cívico e político de Fernando Lopes-Graça estavam ainda longe de ser inteiramente conhecidos em toda a sua enorme riqueza e extensão.
As comemorações de 2006 fizeram muito para ampliar esse conhecimento. Mas todas as oportunidades que tenhamos de evocar a sua figura exemplar, como esta que a URAP hoje proporciona, podem ainda acrescentar algum elemento que ajude a compreender um pouco mais não apenas a sua obra, o que talvez não seja o mais apropriado a esta iniciativa, mas a sua invulgar e permanente presença na resistência e na luta dos trabalhadores e do povo português, o facto de o sabermos sempre, como diz o poema, caminhando ao nosso lado.
Lopes-Graça é o músico e compositor de génio. É o escritor notável. É o crítico e ensaísta culto e brilhante. É o resistente antifascista coerente e vertical. É o militante e organizador de um largo campo de iniciativa cultural democrática. É o investigador, defensor e recriador do património cultural popular. É o intransigente adversário de todas as formas de conservadorismo, o intransigente criador e divulgador voltado para o futuro, cujos melhores traços identifica na inteligência, na criatividade e na energia popular e em todos aqueles que nela se saibam inserir.
É o homem excepcional cujas opções estéticas e cujos valores éticos partilham uma raiz comum, como exprime em certa ocasião, falando das suas harmonizações de canções populares portuguesas:
«que retirei eu do roubo das canções? Eu vo-lo confesso. Revelaram-me elas melhor a alma do povo português, ensinaram-me a conhecê-lo mais intimamente, ajudaram-me a procurar uma mais funda identificação com ele e eu considero isto um benefício muito importante para um artista, para um músico, que deseja e se esforça por que a sua arte, mais do que uma aventura ou uma confissão pessoal, seja um meio de comunicação, melhor, um meio de comunhão com o povo a que pertence.»
Tudo nesta afirmação é revelador: o respeito e a busca de identificação com a criação popular (um tesouro, na sua expressão); a intenção, como afirmará no final desse texto, de devolver com juro o que antes "roubara", ou seja, de restituir ao povo, enriquecido por um trabalho artístico pessoal erudito e elaborado o material musical inicial, que respeita mas que não reproduz, antes complementa e valoriza num plano diferente; e sobretudo o desejo de inserir a criação individual na realidade comum, encontrando eco no coração e no espírito dos seus irmãos de raça, única forma de encontrar eco no coração e no espírito dos seus irmãos de outras raças.
A obra de Fernando Lopes-Graça, enquanto compositor, musicólogo, pianista, maestro, professor, investigador, teórico, crítico de arte, marcou impressiva e profundamente o nosso século XX. Mas é indispensável sublinhar um traço fundamental nessa obra. Numa personalidade como a de Fernando Lopes-Graça a energia criadora está indissoluvelmente ligada à sua visão do mundo e à sua opção política e ideológica: desde as Canções Regionais às Heróicas, a obras como Em Louvor da Paz ou o Requiem para as vítimas do fascismo em Portugal, o artista criador e o combatente pela liberdade, pela paz, pelo progresso são um só, e não poderiam sê-lo de outra forma.
Um dos aspectos mais admiráveis e exemplares na personalidade de Fernando Lopes-Graça é certamente a firmeza e a coerência das suas convicções e do seu carácter, dos seus princípios, do conjunto da sua criação intelectual e artística, da sua intervenção cívica e política. Lopes-Graça é um exemplo maior de intelectual comunista. Do intelectual livre que, por o ser em todas as circunstâncias, toma como sua a causa da emancipação e da liberdade do seu povo, a causa da luta contra o obscurantismo e a opressão, da luta contra a exploração - a causa do socialismo e do comunismo.
Membro do PCP desde 1948, a sua adesão ao Partido não é mais do que a sequência natural da intervenção de alguém que, desde a juventude - desde que, tinha ele 19 anos, ocorreu o golpe militar do 28 de Maio que abriu caminho ao regime fascista - assumiu uma corajosa e intransigente opção democrática, antifascista, progressista. À data da sua adesão ao Partido, Fernando Lopes-Graça sofrera já as perseguições políticas, a prisão, o desterro, o exílio. O fascismo vedara-lhe o acesso a cargos públicos - e mesmo quando lhe foi proposto dirigir os Serviços de Música da então Emissora Nacional, não chegou a tomar posse do cargo porque se recusou a assinar a declaração de «repúdio activo do comunismo e de todas as ideias subversivas» que o fascismo exigia aos funcionários públicos. O regime fascista vigiava e perseguia Fernando Lopes-Graça com o mesmo implacável ódio com que perseguia os resistentes clandestinos. Vigiava-lhe as intervenções, os passos, a casa, as pessoas que contactava e o contactavam. As dezenas e dezenas de folhas do seu processo nos arquivos da PIDE - com relatórios de informadores que vigiavam o seu dia-a-dia - constituem um testemunho eloquente do temor que suscitava ao fascismo a sua personalidade prestigiada, firme e intransigente. Como os melhores de entre nós, Fernando Lopes-Graça foi um resistente sem quebras, um combatente de todos os momentos: desse tempo sombrio, opressivo e repressivo do fascismo; do tempo novo, luminoso e empolgante da revolução de Abril, com as suas conquistas económicas, sociais, políticas, culturais, civilizacionais; do tempo manchado de sombras e de sinais do passado que a política de direita, a política da contra-revolução, desde há mais de trinta anos, vem fazendo pesar sobre os trabalhadores, o povo e o País.
Toda a vida e toda a acção de Fernando Lopes-Graça são inseparáveis do núcleo fundamental das suas convicções, da sua inteligência e do seu génio criador voltado para o povo e para o futuro. As suas palavras, mesmo quando fala apenas de música ou de cultura são as de um revolucionário, como quando afirma: "uma cultura, qualquer espécie de cultura, é incompleta, viciada, unilateral, se só olha para o passado e recusa o presente, naquilo que ele tem ou possa ter de vivo, de criador, de fecundo, se não acompanha o presente no seu caminho de descoberta e de conquista para o futuro".
É nessa perspectiva e nessa visão revolucionárias que se inserem as suas Canções Regionais Portuguesas, recriadas através de geniais arranjos e harmonizações - a partir do notável trabalho de recolha levado a cabo por Michel Giacometti. E, sobretudo, aquelas que, segundo ele, mais se identificavam com o povo, com os seus anseios de liberdade, de amor, de paz, de progresso, e que, porque portadoras da imensa sabedoria de vida do povo, transportavam consigo a capacidade de luta e de resistência. Canções que o Coro cantava por todo o País e que, pouco a pouco, passaram a ser cantadas por operários, camponeses, estudantes e intelectuais antifascistas - pelo povo.
E as suas Canções Heróicas - cuja beleza empolgante se funde com a beleza da poesia de combate dos grandes poetas da resistência e da luta pela liberdade - são tão profundamente parte integrante da resistência ao fascismo como cada luta de trabalhadores, cada praça de jorna, cada luta estudantil, cada greve operária. Proibidas pelo fascismo, mas cantadas por todo o País pelo Coro da Academia dos Amadores de Música - para todos, simplesmente o Coro do Lopes-Graça, como o tinha sido antes o Coro do Grupo Dramático Lisbonense - as Canções Heróicas foram um estimulo e um incentivo à resistência, um grito de confiança e de esperança para os milhares e milhares de pessoas que as ouviam e, com o Coro, as cantavam. Mas foram mais, muito mais do que isso: foram, elas próprias, resistência. E quando o regime fascista as proibiu, o Coro foi substituído por um outro Coro - o dos milhares de vozes cantando essas canções em milhares de locais, em convívios do mais diverso tipo, em iniciativas de resistência ao regime fascista, no exílio, nas prisões de Caxias e de Peniche. Muitas vezes, depois das actuações do Coro, apenas autorizado a cantar as canções regionais portuguesas (e, mesmo essas, sujeitas a censura prévia e com pides e bufos a vigiarem os espectáculos) as Heróicas eram cantadas pela assistência ou, no final dos espectáculos, pelo Coro e pela assistência, já longe dos ouvidos dos esbirros fascistas.
Quando, com a acção dos militares revolucionários culminando décadas de luta da classe operária, dos trabalhadores, dos intelectuais, das mulheres, dos jovens, fizemos Abril, quando conquistámos a liberdade, alcançámos uma primeira grande etapa do caminho que há-de conduzir ao fim da estrada. E o Coro do Lopes-Graça cantou as Heróicas enquanto desfilava nesse momento maior da nossa vida colectiva que foi o primeiro 1º de Maio; e voltou a cantá-las, num espectáculo memorável, realizado no Coliseu dos Recreios precisamente um mês depois do Dia da Liberdade, em 25 de Maio de 1974, quando o povo, nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos escritórios, nas escolas, dava os primeiros grandes passos na caminhada do processo revolucionário; e cantou-as, ainda, em comícios e festas do Partido, e nas Unidades Colectivas de Produção da Reforma Agrária, e em colectividades e salas de espectáculos por todo o País. Porque as Heróicas foram parte integrante da resistência que construiu Abril e, por isso mesmo, eram parte integrante do processo revolucionário e continuam, hoje, a integrar a nossa luta de todos os dias por uma ruptura democrática contra políticas que vêm novamente agravando o atraso, a dependência e subalternização do nosso país no contexto internacional, incluindo nos planos da cultura artística e científica.
Poucos artistas têm, como Lopes-Graça, em cada criação um acto de resistência. Que em Lopes-Graça é também resistência a qualquer submissão, a qualquer facilitação, a qualquer demagogia, a qualquer transigência de linguagem ou de ordem estética. É essa a atitude coerente com o profundo respeito que tem pelo seu povo: o desejo de que se aproprie das obras certamente belas, mas complexas e exigentes que realiza, obras que abram caminho, não obras que sigam trilhos já gastos.
Lopes-Graça, como Mayakovski, sabe que o mundo novo exige novas formas e expressões. Sabe que o que torna mais ou menos fácil a compreensão da obra de arte não é a sua maior ou menor complexidade ou novidade formal, mas os elos que saiba estabelecer com a realidade comum (na sua expressão já citada).
Um outro grande revolucionário, Amílcar Cabral, com quem Lopes-Graça certamente se cruzou em iniciativas dos tempos do MUD, destacava quatro tipos de resistência: resistência política, resistência económica, resistência cultural, resistência armada. Em 1969, numa altura em que o seu partido, o PAIGC, conduzia a luta armada contra o colonialismo português, este dirigente colocava a resistência cultural no mesmo plano da luta armada, abordando-a com cuidadoso detalhe: a herança voltada para o futuro, as questões de mentalidade, a questão das limitações das línguas nativas, a acção organizada como forma específica de cultura, a cultura como elemento essencial de transformação e progresso. E fala da música em termos que Lopes-Graça não enjeitaria: do seu enraizamento em realidades comuns que diferentes grupos humanos podem partilhar em lugares diferentes: realidades sociais, condições geográficas e outras. Compara os cantos dos balantas com os cantares alentejanos: ambos nascem da planície. Diz o que Lopes-Graça exprime de uma outra forma quando fala do eco no coração e no espírito dos seus irmãos de raça, única forma de encontrar eco no coração e no espírito dos seus irmãos de outras raças.
Realidade comum que é feita de uma raiz humana e popular longamente construída e recriada, ao mesmo tempo que do melhor e mais avançado que a inteligência, o sonho e a sensibilidade humanas tenham sabido criar. E que se torna, desse modo, universal.
A obra de Lopes-Graça é uma construção riquíssima e complexa, que importa conhecer, amar e partilhar na sua totalidade. Como toda a obra de um grande artista, é uma obra simultaneamente tecida de múltiplos laços com o seu tempo histórico, e com o tempo que há-de vir. Muito poucos compositores haverá, em toda a história da música, cuja criação se tenha tornado tão intimamente tecida das lutas do seu povo. De muito poucos se poderá dizer, como do seu Requiem em memória das vítimas do fascismo em Portugal, que na sua beleza intensa, dolorosa e impressionante resume a heróica trajectória da resistência antifascista.
De muito poucos se poderá dizer, como das suas Canções Heróicas, que desempenharam e continuam a desempenhar um papel semelhante àquele que Lénine atribuía à imprensa revolucionária: o de serem um organizador colectivo, o de apontarem um rumo e lhe marcarem um ritmo.
Os dias de hoje são também dias de dura resistência. Não é assim de admirar que, de novo, e com toda a energia, a música de Lopes-Graça percorra as ruas e preencha as praças deste país, que novas gerações de novo a façam sua. Elas fazem parte de uma longa e heróica marcha que, por muitas que sejam as dificuldades que tenha de superar, caminha em direcção ao futuro. Não é desajustado voltar a associar Amílcar Cabral ao seu nome. Porque a ofensiva que hoje atinge o nosso país golpeia profundamente a soberania nacional, e as grandes potências europeias e o imperialismo conduzem uma política de dominação que em muitos aspectos assume contornos de recolonização, e nomeadamente de colonização cultural. A luta de resistência dos dias de hoje trava-se certamente em condições bem diferentes da situação de extrema repressão que Lopes-Graça e os outros resistentes anti-fascistas enfrentaram. Mas bate-se contra condições, também no que diz respeito ao atraso cultural e da democratização da cultura, são igualmente de grande gravidade. Portugal tem a 3ª mais baixa taxa de emprego em áreas culturais da UE27, só ficando à frente da Roménia e da Turquia, mas tem em compensação 7ª mais alta taxa de empregos precários e a mais alta taxa de empregos temporários nessas áreas. 17% dos trabalhadores em áreas culturais trabalham sem horário e sem salário.
O 25 de Abril proporcionou um amplo acesso a bens e actividades culturais, anteriormente reservados a elites. Mas em 2007 70% dos portugueses não assistiram a uma única sessão de cinema, mais de 50% não assistiram a um espectáculo ao vivo, perto de 70% não visitaram qualquer espaço cultural, cerca de 60% não leram um livro. E não é porque o não quisessem, é porque a grande maioria não tinha condições (geográficas e económicas) de a eles terem acesso. Entre 2005 e 2009 o preço dos livros aumentou 12%, o dos serviços culturais em geral 10%. E com o aumento do IVA nos espectáculos decidida pelo governo PSD/CDS a situação ainda piorou.
E com a degradação da situação social e económica desde então, e as alterações da legislação laboral, nomeadamente a autêntica destruição da noção de horário de trabalho e a anulação do direito ao descanso e ao lazer, a situação hoje é ainda mais grave.
A reivindicação democrática do direito à Cultura é historicamente inseparável da reivindicação dos trabalhadores da limitação da jornada de trabalho, da reivindicação histórica dos "3 oitos". Não se trata só do direito de ir ao concerto, ao museu, à biblioteca, à exposição, à ópera, ao bailado. É o direito de experimentar o potencial criador de cada um, o direito de, com a cultura, alargar horizontes, compreender o mundo e a sociedade, e agir para a transformar.
É neste quadro de resistência e combate dos dias de hoje que o exemplo e a presença de Lopes-Graça tão vivamente nos acompanha, que o mestre acrescenta vigor à nossa luta. Lopes-Graça, intelectual, músico, resistente, comunista, caminha ao nosso lado no caminho da história. »
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Fernando Lopes Graça nasceu em Tomar a 17 de Dezembro de 1906. Começou a trabalhar, aos 14 anos, como pianista no Cine-Teatro de Tomar. Em 1923, frequentou o Curso Superior do Conservatório de Lisboa, tendo como professores, entre outros, o maior pianista português: Mestre Vianna da Motta (antigo aluno de Liszt).
Em 1928, frequentou também o curso de Ciências Histórico-Filosóficas na
Faculdade de Letras de Lisboa, que viria a abandonar em 1931, em
protesto contra a repressão a uma greve académica. Fundou em Tomar o
semanário republicano "A Acção".
Em 1931, no dia em que concluiu, com a mais alta classificação, as
provas de concurso para Professor de Solfejo e Piano do Conservatório
Nacional, é preso pela polícia política, encerrado no Aljube e, a
seguir, desterrado para Alpiarça.
Em 1934, concorreu a uma bolsa de estudo de música em Paris. Ganhou o
concurso mas a decisão do Júri é anulada por ordem da polícia política.
Em Setembro de 1935 é de novo preso e enviado para o Forte de Caxias.
Em 1937 é libertado e partiu para França por conta própria, estudando Composição e Orquestração com Koechlin.
Em 1939 recusou a nacionalidade francesa, sendo forçado a regressar a Portugal.
Em 1940 é-lhe proposto dirigir os Serviços de Música da Emissora
Nacional. Não chegou a tomar posse do cargo porque recusou assinar a
declaração de "repúdio activo do comunismo e de todas as ideias
subversivas" que, então, era exigida a todos os funcionários públicos.
Em 1945 integrou o Movimento de Unidade Democrática (MUD], do qual virá a
ser dirigente. No âmbito das actividades do MUD, Fernando Lopes-Graça
criou o Coro do Grupo Dramático Lisbonense, mais tarde Coro da Academia
dos Amadores de Música. As Canções Regionais Portuguesas e as Canções
Heróicas são cantadas por todo o país. Aderiu ao Partido Comunista
Português.
Com o aumento da repressão, na década de 50, as orquestras nacionais são
proibidas de interpretar obras de Fernando Lopes-Graça; os direitos de
autor são-lhe roubados; é-lhe anulado o diploma de professor do ensino
particular; é obrigado a abandonar a Academia dos Amadores de Música, à
qual só regressa em 1972.
É autor de uma vasta obra literária sobre música portuguesa, mas maior
ainda é a sua obra musical, da qual são assinaláveis os concertos para
piano e orquestra, as inúmeras obras corais de inspiração folclórica
nacional, o Requiem pelas Vítimas do Fascismo (1979), o concerto para
violoncelo encomendado e estreado por Rostropovich, e a vastíssima obra
para piano, nomeadamente as seis sonatas que constituem um marco na
história da música pianística portuguesa do século XX.
Condecorações: Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada
(em 1981) e Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (em 1987).