David Pereira
Assinala-se
neste ano de 2010 a passagem do centenário da revolução que em 5
de Outubro de 1910 depôs um regime monárquico desacreditado e
anacrónico e instaurou um regime republicano, burguês e liberal.
Estes cem anos merecem uma evocação destacada assinalando um marco
no longo percurso do povo português pela sua emancipação.
Assim, podemos entendê-la como uma revolução de cariz político e que não garantiu qualquer transformação de cariz económico e social, num quadro de ausência de um partido revolucionário e predomínio entre a classe operária de um radicalismo de feição anarquista, na ausência da difusão com sucesso do marxismo em Portugal. Desde logo também marcada por apropriação por parte da burguesia das muitas expectativas criadas junto do povo português durante vários anos de disseminação do ideal republicano e de acção contra a ordem política monárquica. Essa alienação correspondeu às hesitações e faltas de cumprimento das promessas que os governantes republicanos vieram a cometer a partir do momento em que detiveram o poder político. Se a isto juntarmos o claro aprofundamento do processo de desenvolvimento capitalista em Portugal podemos então compreender algumas das características da I República em Portugal.
No entanto, temos assistido a uma tentativa mais ou menos velada de, através de um posicionamento comemorativista e acrítico que promove uma leitura personalizada e elitista da História e subestima o papel decisivo da componente popular no 5 de Outubro e na derrota de sucessivas conspirações contra-revolucionárias. Uma leitura que ignora as motivações profundas das grandes lutas operárias e populares que percorreram os dezasseis anos da República. Tais visões surgem enunciadas no plano oficial das Comemorações do Centenário da República, mas também através de expressões historiográficas apresentadas como científicas. Num plano mais fundo dessa operação, observamos até, a propósito deste centenário, a reescrita dos últimos cem anos da história colectiva nacional: apagando-se o papel da classe operária e das massas populares como actores principais do que de mais progressista e avançado se alcançou em Portugal; aproveitando-se para se justificar e branquear a ditadura fascista - ditadura terrorista dos monopólios e dos latifúndios associados ao imperialismo estrangeiro -; diminuindo-se as conquistas atingidas com a Revolução de Abril e o processo que se lhe seguiu como o mais luminoso da história colectiva portuguesa; justificando-se, por fim, todo o processo contra-revolucionário encetado após 1976.
É por isso que devemos destacar o facto de terem sido sempre os trabalhadores e as massas populares em Portugal a lutar pela República: na sua implantação, na sua defesa face às tentativas de restauração monárquica ou de regressão reaccionária, contribuindo decisivamente para a sua existência durante aqueles cerca de dezasseis anos. Não foram, seguramente, os trabalhadores e o povo que faltaram à defesa dos ideais da liberdade e da democracia, mas antes vários dos chefes políticos dos partidos republicanos, enredados nas suas próprias contradições e que não quiseram ou não souberam reconhecer os perigos do fascismo para o nosso País, pujantemente apoiado pelo capital latifundista e dos monopólios coloniais, conforme a longa noite fascista de quarenta e oito anos veio infelizmente demonstrar, e onde a trajectória progressista do 5 de Outubro e do 31 de Janeiro também foram bandeiras democráticas desfraldadas na sua tenaz resistência.
Editorial do Boletim da URAP nº126