Intervenção de Aurélio Santos
Director da Rádio Portugal Livre (RPL)
no Colóquio Internacional
«25 anos do 25 de Abril»
organizado pela Biblioteca Museu República e Resistência
sob orientação de António Reis
RÁDIO PORTUGAL LIVRE UMA VOZ VINDA DE LONGE
RPL foi a voz livre de muitos que cá dentro não podiam falar em voz alta - e livre. Foi a voz constantemente desperta para a informação que sempre recebia de uns para a transmitir a quantos quisessem ou pudessem ouvi-la. Uma voz vinda do exílio tem a obrigatória ressonância da voz que vem de longe. De um campo de indeterminável éter que está ao nosso lado e que, no entanto, não sabemos onde se localiza. De sítios onde não podemos saber de onde vem. De lugares que porventura nunca poderemos conhecer, onde talvez, mesmo percorrendo-os, nunca a poderemos encontrar.
Essa voz foi-se tornando necessariamente companheira, pioneira do conhecimento sobre o acontecimento, muitas vezes ocorrido ao nosso lado, na própria cidade, no campo vizinho, até no prédio onde habitávamos sem ter qualquer informação do acontecido.
A voz vinha de longe, é certo. Mas era ouvida bem de perto, com o ouvido colado à onda curta, abafando os sons que pudessem levar à sua detecção, na noite ainda a dormir, ou na madrugada por acordar. E quantas vezes gravada de mansinho, para que depois de reproduzida por escrito, pudesse espalhá-la ainda mais longe.
Temos que lembrar que nem sempre as condições de cada um lhe davam a liberdade de a sintonizar. Restrições familiares, muitas vezes, sobretudo em relação aos jovens, mais controlados pelos pais. Mas também o receio de que a audição fosse captada por algum vizinho: por que não, entre eles, existir um qualquer encapotado agente ou informador da PIDE, disfarçado de honesto cidadão do bairro?
E todos conhecemos também as manobras para abafar, distorcer, mesmo calar esse altifalante longínquo que difundia "subversão". Contra essa voz foi montado um arsenal técnico de interferências, numa orquestração constante de ruídos, roufenhos e confusos, por vezes de um agudo tão metálico que pareciam querer furar o próprio tímpano. Lembremos que à triste colaboração dos emissores da "Voz da América", localizados no Ribatejo, se juntavam os serviços de rádio-comunicações e até instalações das Forças Armadas.
Foi essa, também, uma feroz manifestação da censura, para tentar abafar aquela voz que inquietava os espíritos, que agitava e acordava consciências, que perturbava a ordem de um país aparentemente ajardinado de suaves e brandas paisagens sociais, mas de facto reduzido à paz morta de um cemitério em que o regime queria à força manter os portugueses.
A censura
A censura tinha como respaldo o braço inquisitório da PIDE, que embora julgando-se omnipotente, omnisciente e omnipresente, não conseguia vigiar, perseguir e encarcerar todos os lutadores da liberdade.
A censura constituía uma intervenção preventiva da repressão policial. Era a nuvem negra que se desdobrava sobre todos os meios de transmitir notícia, desde uma simples conversa sussurrada numa esquina ou num café, desde o breve telefonema feito a um amigo, desde o comunicado de uma comissão de trabalhadores ou de uma associação de estudantes, até todos os meios de comunicação social.
A censura não era só instrumento de repressão mas causadora também de grandes atrasos culturais e políticos do povo português. Foi a grande simuladora de um país em mansa asfixia da liberdade. A ela se podem pedir contas de quantos livros não foram lidos, nem mesmo escritos, de quantos prejuízos sofreram várias gerações de portugueses com a truncagem ou proibição de manuais escolares esclarecedores, impedindo com isso uma compreensão do mundo que acompanhasse o seu tempo com a curiosidade e a atenção de um olhar actual e o fosse interpretando com os sinais determinantes da sua época, quer no país, quer no estrangeiro.
A censura foi um esmagar permanente de cultura, um trilhar constante de pensamento, a grande muralha da circulação de ideias. Deixou graves traumas na consciência social, com consequências ainda não mensuráveis após estes 25 anos decorridos em liberdade. Agrilhoou possibilidades, muitas das quais difíceis de refazer. Representou a silhueta revoltante do não poder saber, do não poder ler, do não poder dar em troca de descobrir.
Nos profissionais da informação, escritores e artistas, jovens trabalhadores e estudantes, homens e mulheres do mundo do trabalho, a censura foi sempre o cutelo suspenso, mutilador não só da informação, mas da circulação e formação de ideias. Desfigurou a História - quer a nossa, quer a que nos deixava chegar da de outros povos, apagando-a do povo português. Adulterou factos. Deturpou acontecimentos. Falsificou verdades. Ainda hoje a nossa sociedade sofre essas consequências.
E é por isso que a imprensa censurada não permite saber o que foi toda a realidade da vida e da história de quase meio século de fascismo.
Por isso também, a imprensa clandestina é essencial para a recuperação da memória histórica desse tempo.
A imprensa clandestina
A existência e persistência de um largo naipe de imprensa clandestina é um traço que marca os quase 50 anos de censura em Portugal.
Imprensa evidentemente elaborada em terreno minado, entre assaltos policiais às tipografias, com prisões, torturas, até mortes. Mas minado também porque desde a recolha de notícias ao circuito redacção/impressão/distribuição qualquer falha de cuidados podia ser fatal.
As tipografias clandestinas do Partido Comunista Português foram a coluna dorsal dessa imprensa.
Delas saíram não só as publicações clandestinas do PCP - lembremos a edição ininterrupta de o "Avante!" durante mais de 30 anos, bem como a edição de "O Militante", mas também uma ampla gama de imprensa clandestina unitária antifascista, como o boletim e comunicados do Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista (MUNAF) e documentos do Movimento de Unidade Democrártica (MUD) nos anos 40, do Movimento de Unidade Democrárica Juvenil (MUD JUVENIL) nos anos 40 e 50, da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPNL) e do "Anticolonial" anos 60 e ainda boletins de classes profissionais como "O Camponês", para os trabalhadores rurais do sul, "A Terra" para os agricultores, "O Têxtil", "O Corticeiro" e outros.
Todas estas publicações, além de outras que a luta clandestina exigia (manifestos, comunicados, reprodução de documentos centrais ou locais do PCP), representaram um esforço imenso. De 1935 a 1974 existiram cerca de 80 tipografias clandestinas do PCP, com tiragens que em períodos de maior actividade política e luta social atingiram muitos milhares de exemplares: 300.000 do "Avante!" entre 1947/48 e um total de 230 000, entre "Avante"!, "Militante" e folhetos vários, de Setembro de 57 a Maio de 58.
A Rádio Portugal Livre
Com o nível atingido pela movimentação anti-salazarista em 60/61, outros meios se tornaram entretanto necessários (e possíveis) para além da imprensa clandestina. Essa foi a razão pela qual o PCP se decidiu, em princípios de 1962, à criação de uma rádio clandestina.
Em muitos aspectos a resistência ao fascismo resistiu mais do que PIDE o pôde fazer em defesa do regime: quer na inventividade criativa dos métodos a que chamávamos "conspirativos", e que tentavam sempre adiantar-se às técnicas policiais de repressão, quer numa forte corrente fraterna e activamente solidária entre os que estavam "dentro" e os que estavam "fora", quer ainda entre os que viviam na "legalidade" e os que já se encontravam na "clandestinidade".
Uma rádio não substituía ou dispensava a importante função da imprensa clandestina; nem isso era o que se pretendia; mas era uma espécie de feixo complementar e potencializador, dando maior facilidade de acesso à informação, maior rapidez na difusão das notícias, sem a pretensão da "actualidade" do dia-a-dia; no entanto, a notícia de uma greve, mesmo quando dada após um mês da sua realização, continuava a ser notícia e não raras vezes o único meio de ser conhecida.
Por outro lado, a rádio permitiu melhor defesa à difusão da imprensa, evitando parte dos riscos da sua distribuição e contribuiu para maior amplitude e volume da informação.
Em Março de 1962 (12 de Março) Rádio Portugal Livre iniciou as suas emissões. E durante 12 anos, RPL manteve emissões diárias de meia hora, às 7.00 h às 19.00 h, às 21.15 h e das 0h00 às 0h20. Aos domingos, emitia um programa destinado especialmente aos camponeses e à agricultura e aos sábados o programa "A Voz das Forças Armadas".
Mais tarde, em 1963, após a independência da Argélia, e com a participação do PCP, iniciou também as suas emissões a rádio "Voz da Liberdade", orgão da FPLN, que emitia aos sábados (posteriormente também às quartas-feiras) a partir das 0,45 horas.
Se para a imprensa clandestina se encontraram - e engendraram - formas de produção e distribuição no país já para uma rádio clandestina não poderiam criar-se condições idênticas para a manter a emitir de território nacional ou de outros ligados à ditadura.
Diferentemente de rádio Voz da Liberdade, que utilizava as instalações da Rádio de Argel, a RPL era, ela própria, clandestina. Para as suas emissões utilizava instalações técnicas criadas no quadro da cooperação internacional por alguns partidos comunistas e postas à disposição de partidos submetidos à clandestinidade por regimes de ditadura fascista.
Os emissores da RPL estavam instalados na Roménia, e foi de Bucareste, quando se apregoava que era Moscovo ou Praga que nos lançavam no ar de Portugal, que emitimos desde o primeiro ao último dia. Hoje, felizmente, já podemos afirmá-lo sem transgressão de regras de defesa que então eram necessárias.
Durante os 12 anos e meio da sua existência, a pequena redacção da RPL (que nunca chegou a ter mais de 7-8 componentes) trabalhou em verdadeiras condições de "extra-territorialidade", como se estivesse instalada em território português. E com total independência não só quanto à sua orientação, mas também relativamente à sua organização de trabalho. Lá, nessas instalações da RPL, mergulhávamos cada dia e todo o dia na vida do nosso país, procurando sentir o seu pulsar, adivinhar através dos sinais que nos chegavam, a evolução dos acontecimentos, encontrar as respostas mais adequadas para neles intervir. Na ansiedade de receber a próxima notícia chegada do país e na pressa de a divulgar. Sempre à espera da que viria a seguir. Ouvir tantas vozes a pedir para intervir, por cartas quantas vezes esbatidas na noite da viagem, era para nós motivo de incentivo para ampliar ainda mais a nossa. Também isso nos ajudou, embora fosse difícil o nosso trabalho.
Apesar de não ter a recear ali as investidas da polícia fascista, mantinha algumas das normas de medidas de defesa que o PCP foi aperfeiçoando ao longo dos seus 48 anos de clandestinidade. Além de outros motivos - a defesa da RPL era primordial - até para podermos, em qualquer momento, voltar clandestinamente ao interior do país (como aliás aconteceu a vários redactores).
Mergulhados no dia-a-dia na vida portuguesa (e embora não sofrendo as condições penosas de tantos outros exilados) também, como eles, sentíamos o "gosto amargo" da saudade da pátria de que falava Almeida Garrett. O contacto permanente com o país, através das notícias que nos eram enviadas pelo partido, além de nos atenuarem o gosto amargo do exílio, foi o principal suporte do nosso trabalho na rádio. Eram notícias que sabíamos passarem de mão em mão, por muitas mãos, atravessando muitos riscos e fronteiras, até chegarem às nossas. Quantas vezes em papel de seda escrito a um espaço para reduzir o volume de papel e em cópias já dificilmente legíveis. Não havia ainda as fotocopiadoras de hoje, nem computadores (claro, com uma simples disquete tudo seria mais fácil)... Com efeito, não era possível alimentar os programas de uma rádio com emissões noticiosas diárias sem o suporte das informações colhidas por todo o país, através da organização do PCP, em fábricas, empresas, escolas, quartéis, cidades, aldeias.
Eram as notícias que depois de compiladas nas casas clandestinas do partido, seguiam também para as redacções da imprensa clandestina. Graças a elas, recolhidas e transportadas com risco de perda da própria liberdade - e talvez mais - a RPL podia dar informação diária sobre lutas, sobre a guerra colonial, concretizar as críticas e denúncias da política salazarista e marcelista, divulgar as posições e opiniões do PCP sobre os problemas do país, mas também promover e apoiar a unidade antifascista e a luta dos povos coloniais, que igualmente tinham a sua voz na RPL.
Intervenções da RPL na luta do povo português
Interruptor que desligava a censura, a RPL rasgou o espaço não só trazendo informação.
Não foi só eco de vozes escritas ou gravadas que vinham do país, devolvendo-as e ampliando-as. Foi também impulso para o arranque, a acção, de muitas formas de organização e intervenção antifascista.
Alguns momentos especiais de intervenção da RPL merecem aqui referência.
Em primeiro lugar, a sua contribuição para a realização de grandes manifestações políticas de massas, como o 1º de Maio de 1962.
Vivia-se então um momento de grande intensificação da luta antifascista, com múltiplos protestos contra a farsa eleitoral de 1961 e contra a guerra colonial iniciada esse ano em Angola.
O aparecimento de uma nova frente antifascista com o início das emissões da RPL em Março de 1962, veio dar novo entusiasmo e mais confiança à luta popular. Os apelos lançados pela rádio galvanizaram os trabalhadores e o povo. E o 1º de Maio de 1962 abriu uma nova fase na luta antifascista.
Importante foi também a contribuição da RPL para divulgação e apoio à unidade das forças da oposição.
Foi através da RPL que primeiro chegou ao país a notícia da realização da 1ª Conferência das Forças da Oposição Democrática, realizada em 1962 "algures na Europa", em que foi criada a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN) e também através da RPL falaram ao povo português os dirigentes da Frente após a criação da Junta Revolucionária Portuguesa, presidida pelo general Humberto Delgado na 2ª Conferência da FPLN.
Outra intervenção da RPL que merece referência foi a realizada por altura das catastróficas cheias de 1967 na região de Lisboa. A RPL teve importante papel na denúncia das responsabilidades das autoridades fascistas, na intervenção das forças democráticas para organização dos socorros e na mobilização popular em apoio dos sinistrados.
Importante foi também a acção da RPL em 1968 quando, após o afastamento de Salazar, o governo de Marcelo Caetano lançou a manobra da demagogia liberalizante.
Alguns sectores da oposição mostraram-se esperançados na manobra e prontos a colaborar nela, considerando que o regime ia transformar-se numa democracia parlamentar. Outros proclamavam que nada mudara. O PCP, tomando rapidamente uma posição que a RPL largamente divulgou, denunciou a manobra como sendo por um lado a continuação do salazarismo sem Salazar, mas simultaneamente uma expressão do real agravamento da crise do regime. O PCP considerou que esse agravamento criava novas possibilidade de luta aos trabalhadores e aos antifascistas. Os acontecimentos comprovaram a justeza desta posição.
A demagogia liberalizante foi derrotada e o país lançou-se no fluxo de lutas que criou as condições para a vitória do 25 de Abril.
Nestes e noutros momentos deu a RPL uma contribuição particularmente valiosa para se criar uma expressão política ajustada à intervenção popular e para a popularização dos objectivos essenciais a conquistar com o derrubamento do regime fascista: a conquista das liberdades fundamentais (de expressão, de reunião, de associação, de manifestação) a liquidação do aparelho repressivo com a dissolução da PIDE, a libertação dos presos políticos, o fim da guerra colonial. Bem como a reivindicação de direitos sociais básicos (ao trabalho, à segurança social, à saúde, ao ensino) e o controle democrático dos sectores económico.
Assim, deu a RPL a sua contribuição para que, logo no dia 25 de Abril, quando o Movimento das Forças Armadas neutralizou o aparelho repressivo do regime, o povo saísse à rua, e numa intervenção massiva de grande coesão política, trouxesse para o centro da revolução dos cravos as grandes reivindicações para uma real democratização da vida nacional.
O 25 de Abril
Na RPL, esse dia 25 de Abril foi vivido com particular ansiedade.
Logo pela manhã, fomos alertados pelo silêncio das rádios portuguesas, quebrado pelos comunicados do MFA, apelando à população para "ficar em casa". Mas quando começaram a ouvir-se as reportagens descrevendo as manifestações do povo na rua e cercando Marcelo Caetano no quartel do Carmo: quebrou-se a censura - dissemos - o regime vai cair.
A apoteose do 1º de Maio, com muitas centenas de milhares de pessoas a proclamar liberdade, culminou esses dias de conquista das liberdades, trouxe-nos a certeza de que uma nova página se abria na história de Portugal.
Não participei pessoalmente nesse dizer e fazer grandioso de massas a impor democracia. Ainda hoje não o lamento. A voz da RPL ainda podia ser necessária.
Não se duvide que era com ouvidos ansiosos que seguimos o fragor das notícias. As nossas emissões continuavam regularmente. Mas agora, quem escutava atentamente dia e noite o evoluir dos acontecimentos, éramos nós. Como se quiséssemos devolver a voz ao povo para quem falávamos, entregando-a como missão cumprida.
RPL acabou as suas emissões em Outubro de 1974, por o PCP considerar haver já condições para a consolidação democrática no país.
A nossa última emissão acabou com a seguinte frase: "Esperamos que nunca mais seja necessário haver uma rádio clandestina, para que o povo português saiba o que se passa no seu próprio país".
A concluir, essa é também a convicção que aqui expresso: que nunca mais seja necessária uma voz vinda de longe para o país ouvir o país, para nos ouvirmos a nós próprios.