Intervenção de Ana Pato na Homenagem aos Tarrafalistas (2019)

Intervenção na Homenagem aos Tarrafalistas assassinados do Campo de Concentração do Tarrafal, 23 de Fevereiro de 2019, Cemitério Alto de São João
Ana Pato, do Conselho Directivo da URAP

 

"Artigo 1: é criada uma colónia penal para presos políticos e sociais no Tarrafal, da Ilha de Santiago, no Arquipélago de Cabo Verde."

 

"Artigo 2: A colónia penal a que se refere o artigo anterior destinar-se-á a presos por crimes políticos que devam cumprir a pena de desterro ou que, tendo estado internados em outro estabelecimento prisional, se mostrem refractários à disciplina deste estabelecimento ou elementos perniciosos para os outros reclusos".

Assim se decretava, a 23 de Abril de 1936, a abertura da prisão. Há 83 anos.

 

Mas não é certamente na letra escrita do carcereiro que se pode adivinhar os propósitos da criação da colónia penal. Melhor se perceberá nas honestas palavras ditas pelo director: "Quem vem para o Tarrafal vem para morrer"; ou nas do médico: "não estou aqui para curar doentes, mas para passar certidões de óbito".

 

O Tarrafal era um campo de morte, o "campo da morte lenta", um campo de concentração criado à imagem dos campos de concentração nazi.

 

Hoje estamos aqui para homenagear os que lá estiveram presos. Por isso, é a eles que devemos a palavra. "O Tarrafal não foi um sonho mau; foi um crime tremendo, friamente meditado e friamente executado", acusa Francisco Miguel, o último sobrevivente a sair do Tarrafal, em 1953.

 

Durou 18 anos esta primeira fase de funcionamento do campo do Tarrafal. A primeira leva de 152 presos eram participantes da insurreição do 18 de Janeiro de 1934, na Marinha Grande, e da Revolta dos Marinheiros, nos navios de guerra nesse ano de 36. Por lá, ao todo, passaram 340 antifascistas. Entre eles estava o secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves. Ele não voltou. A soma do seu tempo de prisão ultrapassa os 2000 anos.

 

Mas não esquecemos que o campo foi reaberto para prender os nossos irmãos africanos que também eles lutavam pela liberdade e pela independência.

 

No Tarrafal, havia a biliosa e havia a frigideira. Quem não morreu, regressou com a saúde comprometida.

 

Foram 32 os antifascistas portugueses que não sobreviveram, e os seus restos mortais, depois de trasladados em 1978, perante 200 mil pessoas, encontram-se aqui neste memorial.

 

Este jazigo é a denúncia e a memória tornadas físicas de que houve fascismo. Mas é também o apelo cheio de futuro que Francisco Miguel nos deixou:

 

"Antifascista, democrata, homem progressista: quando pensares nos direitos da pessoa humana, não te esqueças do Tarrafal. Se queres defender a liberdade e construir e consolidar a verdadeira democracia, faz alguma coisa para que o fascismo não possa voltar mais a terra portuguesa. O Tarrafal simboliza 48 anos de política criminosa. Nós, povo português, não podemos permitir que esse crime se repita".

 

Os mortos e os sobreviventes interpelam-nos directamente. E esta mensagem é de uma actualidade cortante quando olhamos com atenção para o nosso país e para o mundo de hoje.

 

O capitalismo está em crise. É ele que traz no seu bojo as saídas ditatoriais. Mas nada se repete da mesma maneira: as formas e as táticas são outras. Contudo, na essência, a mesma necessidade de oprimir para poder explorar. E, com isso, a miséria e a guerra. Aqui, as liberdades e os direitos são danos colaterais.

 

O 25 de Abril deixou profundas raízes na sociedade portuguesa. Não é de todo alheio a isso o facto de não termos uma extrema-direita organizada e com expressão em Portugal. Porém, fazem-se ensaios.
A presença de Mário Machado, nazi-fascista e assassino, num programa de entretenimento é disso exemplo, assim como a promoção descarada por parte da CS de uma manifestação promovida por organizações de extrema-direita que acabou por se revelar um estrondoso e caricato insucesso.

 

Mas há outros perigos, tão maiores quanto mais devagarinho se vão instalando. Há anos que assistimos à reescrita da história e ao branqueamento do fascismo.
E à ocultação: a ignorância fragiliza, como é fácil de perceber.

 

Há anos a que assistimos a ataques às liberdades e direitos fundamentais. E um dos perigos maiores é o da normalização. Não podemos deixar que se torne normal o despedimento de sindicalistas, o medo de fazer greve, o impedimento de Reuniões Gerais de Alunos ou de distribuição de propaganda.
A liberdade e a democracia não são coisas abstractas. Por isso, não podemos deixar que se torne normal achar que o trabalho, a educação, a saúde ou a habitação não são um direito.

 

Como está bem de ver, a resposta antifascista é uma resposta geral. Requer o nosso activo empenho político e social em várias frentes.

 

Da parte da URAP, reclama-se a intervenção sobre o momento presente. A URAP não é apenas a organização dos que lutaram pelo derrubamento da ditadura portuguesa. É de todos quantos hoje lutam pela liberdade e a democracia.

 

Uma das missões da URAP é denunciar que houve fascismo em Portugal e mostrar que ele foi derrubado pela luta organizada. Ora, isto não visa apenas preservação da memória do passado. Visa também a preparação do presente e do futuro.

 

Por isso a URAP desdobra-se para fazer sessões em escolas, numa acção que chega a milhares de jovens. Precisamos de ir ainda a mais escolas e de uma maior cobertura nacional. Cada activista da URAP pode ajudar a organizar endereçando convites às escolas da sua área.

 

O mesmo em relação ao livro sobre o forte de Peniche. Está a ser uma iniciativa de grande sucesso. Vai já na 4a edição. E também em relação ao muito recente livro sobre o Movimento da Juventude Trabalhadora.
Estes livros valem, não só por si e pelo registo histórico que permitem, mas também pela larga dezenas de sessões que nos estão a permitir realizar pode todo o país.

 

A criação de um Museu Nacional da Resistência e Liberdade no Forte de Peniche representa uma grande vitória e o culminar de um processo de luta em que a URAP se encontrou na primeira linha. Dia 27 de Abril vai ser inaugurada parte deste museu e o Memorial com o nome dos presos políticos. Queremos que lá estejam largas centenas ou mesmo milhares de pessoas numa grande demonstração de firmeza pela defesa do Museu, da memória e dos valores e conquistas da Revolução. Vamos organizar transportes e apelamos a que cada um de vós mobilize.

 

Companheiros,

 

temos muitas tarefas. Para as levar a cabo, precisamos de reforçar os nossos núcleos e criar novos. Está provado que as potencialidades são grandes, assim como o âmbito da nossa intervenção.

 

O momento actual exige compromisso e acção de cada um de nós.

 

Fascismo nunca mais.

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