Lembrar a vida dos antifascistas para que a memória não se apague e para passar o testemunho às novas gerações é uma das finalidades da União de Resistentes Antifascistas Portugueses, que organizou uma sessão evocativa dos 70 anos do memorável comício de candidatura à Presidência da República do Prof. Ruy Luís Gomes.
A sessão decorreu ao ar livre, no local onde outrora foi o Cine-Teatro Vitória, em Rio Tinto, Gondomar, tendo o núcleo da URAP do Porto convidado a professora de História Contemporânea da FLUP Ana Sofia Correia, e o membro do Conselho Nacional da URAP Laurentino Silva para falarem, dia 3 de Julho, na figura do candidato do Movimento Nacional Democrático (MND) Ruy Luís Gomes, no momento político que se vivia em 1951, da falta de liberdade e da repressão.
A apresentação do Acto Evocativo esteve a cargo de Teresa Lopes, da direcção e do núcleo do Porto, que fez um historial das dificuldades que o candidato da oposição enfrentou para fazer campanha, desde logo no aluguer de salas.
Teresa Lopes citou José Silva nas “Memórias de um Operário”: “Não havia dúvida, a acção repressiva do governo através da PIDE e dos Tribunais Plenários tinham intimidado de tal forma o país que os cidadãos que se interessassem pela marcha da política nacional só tinham duas alternativas na sua frente - ou serem santos, ou heróis!”
“E foi assim que o proprietário do Cine Vitória, encarando muito embora as consequências da sua atitude, cedeu a casa para o dia 3 de Julho. Estranhámos que à porta do cinema não estivesse nenhum povo, mas sim uma copiosa concentração policial, de aspecto bélico e arrogante. Soubemos depois que milhares de populares tinham sido corridos das imediações do cinema a casse-tete pela Polícia de Segurança. Ao candidato estava reservada uma recepção comovente. Mal tinha dado dois passos na sala de espectáculos e logo fora descoberto. Então foi o fim do mundo! Como se uma mola tocasse a multidão que ali se encontrava, esta levantou-se e fez uma ovação formidável e ensurdecedora, ouvindo-se contínuos vivas ao candidato do Povo, da Paz e da República”, contou.À saída da sessão, muitas vezes interrompida, “o candidato e pessoas que o rodeavam foram agredidas por uma força da PSP. Ficaram registadas no Hospital de Santo António os ferimentos e fortes contusões sofridas em Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, Lobão Vital, António Paula, Lino Lima, José Almeida, Alberto Pinto, Maria Júlia Guimarães, José Borrego, A. Ferreira da Costa, José Fernandes Bichão, José Almeida Faria, Norberto de Sá, Manuel Costa, António Magalhães. Muitos outros, também atingidos, não se deslocaram para tratamento no hospital. Outros ainda seriam presos pela PIDE”, lembrou Teresa Lopes.
A dirigente da URAP disse ainda que “posteriormente a candidatura de Ruy Luís Gomes foi pura e simplesmente recusada pelo Conselho de Estado de Salazar – o único “chumbo” que o Professor emérito recebeu, nas palavras de Virgínia Moura. Um democrata que seria ainda preso em várias ocasiões, expulso da Universidade e exilado”.
“Foi assim o fascismo e não há que o esconder às novas gerações, para que saibam o que custou a liberdade e a democracia, para que exerçam e defendam os direitos e porque sem memória não há futuro!”, sublinhou.
Ruy Luís Gomes nasceu no Porto, a 5 de Dezembro de 1905, tendo-se licenciado com 20 valores em Ciências Matemáticas, na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, onde também se doutorou, em 1928. Foi professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde chegou a professor catedrático.
Destacado cientista, envolveu-se na política, sempre numa atitude de grande empenho cívico de luta contra a ditadura fascista do Estado Novo, o que lhe valeu mais de 10 prisões, a demissão da Universidade do Porto e a ida para o exílio, em 1958, tendo regressado a Portugal apenas após a Revolução de 25 de Abril de 1974.
Ruy Luís Gomes era um reputado oposicionista, fundador do MUNAF e do MUD, e a sua candidatura contou com o apoio do MUD Juvenil, do MND e do PCP. Era ainda um compagnon de route do PCP.
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Naquela noite em Rio Tinto…/Lembras-te/Também me lembro/E nunca esquecerei…/Foi à saída do cinema/Que fomos espezinhados, /Espancados/E o solo ficou tinto de sangue…/ Naquela noite em Rio Tinto,/À saída do cinema,/Ouviu-se a voz do comando:/À carga, à carga!/Barbaramente espancados…/E o nosso único mal /Era não concordar/Com a ditadura “paternal”!/Naquela noite em Rio Tinto…
“Rio Tinto”, de Dário Bastos
Noite de Rio Tinto. A noite foi aberta/Pelas vagas do Povo. E as vagas levantaram/Sua voz carregada de esperança, liberta/Do mar que no peito lhe fecharam./Noite de Rio Tinto. Quando a besta assomou,/Patas pisando o corpo de povo,/Mais a noite cresceu e mais funda ficou/Como raiz de um rebento Novo./Noite de Rio Tinto. Enquanto o sangue empasta/A calúnia forja o seu ferro em brasa./Mas o sangue do povo não se perde, alastra,/Como força de uma fonte rasa./Noite de Rio Tinto. Noite do meu ser,/Onde me revigoro e comovo/E creio: numa noite irmã, há-de romper/A estrela da manhã do Povo.
“A Grande Noite”, de Luís Veiga