Estádio conjuntural da evolução do capitalismo e do imperialismo europeus, superado pela derrota militar do nazismo em 1945, ou proposta permanente de práxis política dos setores mais violentos da classe dominante da sociedade capitalista? Desvio incaraterístico na leitura burguesa do mundo contemporâneo, típico de uma era depressiva, ou categoria válida de interpretação da realidade política, social e cultural, aplicável a contextos muito distintos do europeu e a conjunturas posteriores a 1945, à resistência imperialista à descolonização formal, à relativa desindustrialização do Norte do fim de Novecentos, ao fim dos modelos reacionários autoritários clássicos na Europa e nas Américas?
Discutir a atualidade e a operatividade histórica do conceito de fascismo é necessariamente dificultado pelo facto evidente de este ser tornado maldito pela memória do Holocausto e pela sua própria representatividade no conjunto das estratégias políticas das direitas, reconhecendo-se ao fascismo, portanto, uma entidade própria e, sobretudo, ainda hoje vigente como categoria do real.
Não conseguir ler a realidade com que nos deparamos é a forma mais evidente de não ser sujeito da nossa própria vida, da nossa própria história. Saber onde e quando há fascismo é tão importante hoje como o foi no passado. A proposta de leitura do fenómeno que aqui faço bebe a sua vitalidade teórica fundamentalmente na perspetiva de construção do conceito de fascismo genérico, que teve em Enzo Collotti o seu pensador mais sólido. Para a geração de movimentos e regimes autoritários e simultaneamente reacionários do período de entre-guerras mundiais, pelo menos, Collotti sustenta ser possível perceber a «existência de uma ideia-guia, e de tendências de evolução das ideias e instituições políticas, que [podem] assimilar-se no conceito de fascismo, entendido como força de rutura capaz de modificar equilíbrios políticos e sociais, e capaz também de mobilizar estados e potências para a desestabilização da ordem existente, na sua ambição de propor e impor uma nova ordem à Europa»1.
Na definição do mais representativo historiador que trabalha nestes termos em Portugal, Fernando Rosas, trata-se de «uma realidade «fundamental da história europeia dos primeiros 30 ou 40 anos deste século [XX]: a do surgimento de um movimento reacional geral de tipo novo, nascido da crise do sistema liberal, particularmente afirmado e clarificado no período de entre as duas guerras, o qual, sem prejuízo de diferentes formalizações e expressões nacionais, atravessa e unifica historicamente o conjunto das sociedades capitalistas europeias desse período» (Rosas, 1989: 22).
Antes de mais, o fascismo progride em conjunturas de crise da economia capitalista e da cultura social e política que lhe está associada. Ele esconde-se por detrás de reações ultraconservadoras à sociedade de massas, incorporando, contudo, um discurso modernizador e metodologias de mobilização social e política adaptadas às caraterísticas próprias da massificação, o que se tornou, logo nos anos 1920, uma das mais seguras garantias do seu sucesso.
Os fenómenos de concentração capitalista, como aqueles que correspondem à atual fase de desenvolvimento capitalista, com a consequente ameaça de proletarização das classes médias, produzem habitualmente formas de discurso anticapitalista reacionário, que diz pretender o regresso a formas corporativas protegidas, de organização da economia e da sociedade, de atividade económica, aparentando recusar por igual concentração e coletivização, ainda que, socioeconomicamente, a História tenha amplamente demonstrado que a primeira foi uma das mais evidentes consequências da prática política do fascismo.
Nos processos de conquista de poder em que o fascismo se envolveu, os seus arautos sustentaram retóricas em torno do que, nos anos 1930, pelo menos, se chamava o socialismo nacional, escorado, nos países de maioria católica, pela teorização vaticana do corporativismo.
Chegado ao Poder, conquistada a hegemonia no plano do Estado, os fascismos submeteram as classes populares, e muito particularmente os assalariados, em evidente colaboração de classe com um patronato industrial e agrário que vivera o período 1917-23 sob verdadeiro pânico. A prática política destes regimes foi a da intervenção regulamentadora e hiperburocrática das atividades económicas mas assegurando sempre o consenso com os grandes interesses patronais.
Particularmente popular entre os setores social e economicamente menos seguros da burguesia, essas novas e frágeis classes médias que o avanço da escolarização, da urbanização e da terciarização propiciou a partir da I Guerra Mundial, o fascismo emergiu nos anos que se seguiram ao triunfo da Revolução de Outubro como forma brutal de reação ao avanço do movimento operário, reforçado este pelo empenho (e consequente desilusão profunda) das massas no esforço de guerra e pelo triunfo e resistência da revolução soviética.
O pânico antirrevolucionário que viveu a classe dominante e que se estendeu às classes médias foi certamente terreno lavrado para a sementeira fascista, mas é necessário termos bem presente que a grande maioria das experiências fascistas e fascizadas tiveram êxito em momentos de refluxo, e não de avanço, do movimento operário: desde a Itália do fim de 1922 à Alemanha de 1933, passando pelas ditaduras reacionárias que se implantam por toda a Europa meridional e do Sul durante o período, os fascismos instalam-se no poder de forma mais preventiva face à possibilidade de reemergência da capacidade revolucionária do movimento operário, num momento em que esta se perdera ou estava em vias de se perder.
Efetivamente, nem o triunfo de Mussolini ocorre nos anos (1919-20) de mais intensa mobilização revolucionária em Itália, nem Hitler é chamado ao poder pela burguesia mais reacionária em 1919 ou em 1923, quando o movimento espartaquista/comunista alemão conseguiu reunir o maior consenso na classe operária alemã em torno de uma alternativa revolucionária; e muito menos as ditaduras antirrevolucionárias se instalam no poder em Portugal, em 1926, ou na Áustria em 1934, confrontando movimentos revolucionários no clímax da sua capacidade sociopolítica, ainda que, pelo contrário, essa situação possa configurar os casos do levantamento militar franquista na Espanha de 1936.
O fascismo não foi meramente um estádio conjuntural da evolução do capitalismo e do imperialismo europeus, porque não só esteve e está presente fora da Europa e não foi completamente superado pela derrota militar do nazismo em 1945. Pelo contrário, ele emerge como proposta permanente de práxis política dos setores mais violentos da classe dominante da sociedade capitalista.
Como leitura burguesa do mundo contemporâneo, típico de uma era depressiva, ele não foi um desvio incaraterístico, mas, pelo contrário, ele deve, a meu ver, ser lido como categoria válida de interpretação da realidade política, social e cultural, aplicável, insisto, a contextos muito distintos do europeu e a conjunturas muito posteriores a 1945, como pode vir a ser presente, caraterizada pela relativa desindustrialização do norte do planeta, acompanhada por formas muito acentuadas de desmantelamento da democracia política e social onde ela parecia consolidada, por modelos muito evidentes de reforço do poder pseudo-carismático de chefes políticos endeusados por novas técnicas de manipulação e controlo simbólico, por práticas muito eficazes de atomização das formas de representação da opinião e da organização dos interesses sociais.
O fascismo é, em suma, uma das componentes mais perigosas do neo-totalitarismo capitalista que avança sobre o planeta neste novo século.
Texto publicado no boletim da URAP nº161 (Jan-Mar 2020)