por Joana Meirim, Professora do Ensino Superior, investigadora em Literatura e autora da obra «O essencial sobre as três Marias
"– Prossigamos – dizemos – não é a fonte mais impura por estar longe, aí saciaremos a nossa sede. "
Maria Teresa Horta
"Bem sei que a revolta da mulher é a que leva à convulsão (...) nada fica de pé, nem relações de classe, nem de grupo, nem individuais."
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa
Na «Terceira Carta IV», as três autoras das Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, anunciam novo tópico. Se até esta carta tinham seguido mais de perto o mote dado pelas Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado, convocam agora uma das questões centrais do seu projeto literário coletivo, a de escrever sobre a condição da mulher. Lemos nesta carta: »Chegou o momento em que nossa semente gerou, nossa espiral de entrepalavras se alargou, e de cada uma de nós se vem tornando menos o que fica fora, tudo sendo trazido e revisto em nossa assembleia de três; [...] Inevitavelmente, passámos de amor à história e à política [...].»
O livro das três Marias foi proibido pelo governo de Marcello Caetano. O ofício da censura negou-lhe qualquer razão política óbvia – como seria o facto de se referir explicitamente à emigração ou à Guerra Colonial –, considerando-o um atentado à moral e aos bons costumes, um livro obsceno e pornográfico. Maria Teresa Horta sempre exigiu que se reconhecesse a dimensão política da obra, denunciando a forma ignóbil de um governo que julgava três mulheres por terem escrito um livro pretensamente indecoroso. Em entrevista a Ana Raquel Fernandes, Claúdia Coutinho e Sara Ramos Pinto, de 2003, a autora de Ambas as Mãos sobre o Corpo sublinha precisamente esta questão, o facto de as mulheres não terem direito a existência política: «Ao sermos acusadas de obscenidade e pornografia, o governo tentou isolar-nos, iludindo o facto de ser um processo político».
Aquele que ficou conhecido como o processo das Três Marias termina dias depois do 25 de abril de 1974 e a dimensão política das Novas Cartas Portuguesas passa a ser inquestionável, até porque a absolvição das três autoras marca os primeiros dias de um país que sai de uma ditadura longeva. Na capa da revista Flama, de 17 de maio de 1974, Regina Louro referia que «insolitamente» três mulheres tinham sido «chamadas à barra do Tribunal. Por terem ousado pisar um terreno que a organização censória do regime fascista entendeu como um crime de lesa moral pública». O título da reportagem anunciava: «”Três Marias”: o fim de um escândalo». Em fevereiro de 1975, por sua vez, Jane Kramer assina uma recensão sobre as Novas Cartas Portuguesas, no The New York Times Book Review, considerando a absolvição das três autoras um dos primeiros atos oficiais do novo governo revolucionário.
De lá para cá, tem sido possível assumir a dimensão política da obra – tanto na sua posição contra um regime fascista como na defesa de causas feministas – e é sempre bom recordar que o processo judicial que envolveu as Três Marias foi justamente reconhecido pela National Organization for Women (NOW), em junho de 1973, como a primeira causa feminista internacional. Numa assembleia de três, e num exemplo notável de exercício democrático (ao contrário do país de então), três mulheres aceitam as diferenças: cada uma era livre de assumir a sua identidade literária – escrevendo com as plumas que desejasse; cada uma era livre de declarar sem medo que discordava das outras; cada uma revelava livremente o seu feitio, ora implacável ora emotivo.
As Três Marias sabiam bem que o projeto literário coletivo era temerário, num «país onde tudo o que é comunal e fecundo é maldito. Terra que não aguenta expressas a raiva e a maldade que estão também em toda a criação conjunta», como escreveu Maria Velho da Costa na crónica «O portuguesíssimo nome de Marias», de outubro de 1973, posteriormente publicada no volume Cravo.
A revista Flama, a propósito do fim do processo judicial e da consequente absolvição das três autoras, falava do fim de um escândalo. O escândalo foi o julgamento movido contra três escritoras que teriam escrito uma obra literária pretensamente escandalosa para o país de então. Hoje, relendo as Novas Cartas ou evocando as três mulheres que as escreveram, é importante permanecer beauvoirianamente vigilante, não dando por inquestionáveis os direitos garantidos até ao momento e não deixando que o medo – e tantas vezes o medo vai ter tudo – seja um obstáculo à sempre necessária reivindicação dos direitos das mulheres. Em março do ano passado, Maria Teresa Horta, diretora por um dia do jornal Público, respondia no mesmo sentido à pergunta de Isabel Lucas sobre a importância de continuar a celebrar o dia 8 de março: «Fala-se de direitos humanos e homens e mulheres deviam ter os mesmos direitos. [...] Ainda hoje não têm, estão muito longe de ter, mas outra coisa é deixar de lutar por isso.»
artigo publicado no boletim da URAP nº. 180 de 2025