Orlando Gonçalves formou-se como ser humano político no bairro do Rio Seco, Ajuda, Lisboa, onde nasceu em 15 de Agosto de 1921. Foi aí que nele despertaram as noções de interesse comum, comunidade e acção política. Foi aí que adquiriu conhecimento empírico sobre os fenómenos sociais e as estruturas de coerção política. Foi aí que iniciou um percurso que o impeliu a desenvolver actividades culturais, a iniciar-se na escrita e a estabelecer relações sociais que o capacitaram culturalmente e em termos de pensamento crítico para interpretar a realidade e alargar horizontes.
O pai era português e a mãe espanhola, nascida na província de Badajoz, comunidade da Estremadura. Quer o pai, torneiro mecânico e arsenalista, quer a mãe, costureira, quer a escola de A n Voz do Operário, na Calçada da Ajuda, quer os livros a que acedeu de um tio republicano incutiram-lhe o gosto pelo conhecimento e pela justiça. O pai, com outros operários, fundou uma escola para os filhos dos sócios da associação recreativa, o Sporting Clube do Rio Seco. E a mãe, amante das artes cénicas, transmitiu-lhe esse amor que o levou à criação de um grupo de teatro no clube e à promoção de colóquios, palestras e uma feira do livro, em que participaram cientistas e intelectuais da capital.
Incorporado no Exército, na 2a Companhia Trem Hipomóvel, em 1942, Orlando Gonçalves foi preso pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), em 1943, acusado de pertencer ao Socorro Vermelho Internacional. A prisão no Aljube e Caxias relevou a sua acção política contra a ditadura. Mas também determinou a vigilância que sobre ele se abateu durante 31 anos como «adversário do Estado Novo», de que só se libertou em 25 de Abril de 1974, quando se encontrava de novo preso em Caxias.
Cidadão, militante de causas, Orlando Gonçalves estreou-se como escritor em 1948. O seu primeiro romance, Tormenta, foi proibido pela Direcção dos Serviços de Censura e apreendido pela Polícia de Informação e Defesa do Estado (PIDE). Teve nas décadas de 40 e 50 uma participação multifacetada de natureza cultural, sem que a dissociasse da intervenção política.
Começou no bairro a estruturação do escritor, essa primeira dimensão que o incitou a tomar parte em ciclos de cinema no Salão Portugal ou na Associação de Socorros Mútuos da Aliança Operária e, posteriormente, a participar em tertúlias com escritores e outros intelectuais em cafés de Lisboa, como a Veneza, a Brasileira do Chiado ou o Café Portugal. A experiência adquirida e a necessidade de encontrar meios para reproduzir a obra literária, quer sua quer de outros autores, encaminhou-o a concretizar projectos editoriais como o Centro Bibliográfico, a Colecção Horizonte, proibida pela Censura, e a editora Orion.
Depois do seu primeiro romance Tormenta (1948), publicou como edição de autor a novela Aleluia (1949) e o romance Alucinação (1950). A sua obra seguinte, o livro de contos Este Mundo dos Homens, foi o primeiro a ser publicado enquanto editor e com achancela da Orion, em 1954. Além de outra obra sua, o romance Meio-Dia (1957), a Orion editou mais de vinte livros de dezoito autores, entre eles Alexandre Cabral, Antunes da Silva, Faure de Rosa, Fernando Alves dos Santos, Franco de Sousa, Garibaldino de Andrade, Manuel Ferreira, Miguel Serrano e Romeu Correia. A Orion teve como ilustradores Manuel Ribeiro Pavia, Cipriano Dourado, Rogério Ribeiro e Garcês.
Foram editados pela Orion diversos livros de autores de Angola e Cabo Verde, o que antecedeu a cooperação, no domínio da distribuição, com as edições Imbondeiro, de Sá da Bandeira (actual Lubango), Angola. A amizade de Orlando Gonçalves com o escritor Garibaldino de Andrade, então professor na capital da província de Huíla, esteve na sua origem. Pressões da PIDE e asfixia financeira determinaram o fecho da editora no início da década de 60, mas a distribuição de livros da Imbondeiro prosseguiu com o «Notícias da Amadora», a partir de 1963. Saído da prisão em 1944, Orlando Gonçalves retomou a sua intervenção cívica na esfera pública. Acompanhou a actividade do Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF) e aderiu ao Movimento de Unidade Democrática (MUD), em 1945, no decurso do processo em que a oposição exigia a criação de partidos e a participação nas eleições legislativas.
Na década de 50, dirigiu em 1951 o programa radiofónico quinzenal «Literatura e Artes», que ia para o ar na Rádio Peninsular e que acabou encerrado por pressão da PIDE. Participou em 1956 na comissão organizadora da Sociedade Portuguesa de Escritores e, em 1958, na campanha eleitoral de Arlindo Vicente à Presidência da República, intervindo em comícios, designadamente, em Sintra e no Couço.
Em termos profissionais, a sua vida mudou quando, no início dos anos 60, perdeu o emprego que tinha numa multinacional francesa onde trabalhava, em consequência de pretender melhorar as condições de trabalho e benefícios dos trabalhadores. Exerceu trabalhos esporádicos até assumir funções no semanário Notícias da Amadora, a partir de Junho de 1963. Iniciou então uma outra dimensão, o papel de jornalista. Actividade que não lhe era estranha por já ter colaborado nos periódicos Planície, de Moura, Primeiro de Janeiro, do Porto, e Modas e Bordados, de Lisboa.
As circunstâncias encaminharam Orlando Gonçalves a outro rumo, a profissão de jornalista, que exerceu desde então e até à sua morte em 8 de Novembro de 1994. Fê-lo sem que tal estatuto fosse reconhecido, atendendo que a ditadura sempre negou a qualidade de jornalista a quem trabalhasse na imprensa regional ou na imprensa desportiva.
Desde 1963, com Oliveira Salazar no poder e, depois, com Marcelo Caetano, os Serviços de Censura negaram-lhe sempre que constasse como proprietário, editor e director do Notícias da Amadora. O que acontecia apesar de ser com ele que os censores, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) e, posteriormente, a Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT) tratavam todas as questões que ao jornal diziam respeito.
A tarefa revelava-se desafiante e a ela se entregou com empenho. No seu primeiro editorial, em 26 de Junho de 1963, Orlando Gonçalves anunciou objectivo de editar um jornal que servisse o público a que se destinava. Teria a verdade como postulado e a razão e a justiça seriam o seu norte. O jornal constituiu a partir de então a sua principal forma de intervenção política. A escrita, enquanto informação, deveria disseminar conhecimento que se tornasse útil aos leitores. A relação com os leitores e também com parte das fontes de informação sempre foi solidária e próxima.
A implantação do Notícias da Amadora era então local, tendo-se expandido à região e, em simultâneo, aumentado a amplitude dos temas em debate, designadamente no domínio das artes e letras e com a colaboração de diversos intelectuais. Passados sete anos, já com oficinas gráficas próprias, o jornal passou a ter expansão e distribuição nacional. Paquete de Oliveira na sua tese de doutoramento, com base num estudo à imprensa censurada que realizou em Fevereiro de 1973, considerou o Notícias da Amadora como um de três jornais «nitidamente demarcados como os únicos jornais portugueses de “oposição” ao governo» e um de dois casos notáveis da «imprensa “de resistência”» ao salazarismo.
A sua resistência, no sentido de afrontar a ditadura e a censura — designadamente inscrever na esfera pública os temas e acontecimentos que a ditadura queria ocultar, e imprimir nas oficinas gráficas obras de várias editoras ou dos sindicatos fundadores da estrutura da Intersindical —, determinaram a sua prisão em 18 de Abril de 1974. No interrogatório a Orlando Gonçalves ocorrido em 24 de Abril, o inspector José Pinto Galante ameaçou liquidá-lo e encerrar no dia seguinte a tipografia e por arrasto o jornal.
A experiência adquirida em contextos diferenciados conferiu a Orlando Gonçalves um conhecimento prático da realidade social. Elemento que lhe foi primacial no exercício das funções que desempenhou no Notícias da Amadora e na sua capacidade de agir em condições adversas.
Também lhe foi importante no desempenho do papel de director e editor, quer na relação com a ditadura que não o reconhecia quer por parte dos pares que o consideravam, uma equipa de várias proveniências que, ciclicamente, se foi renovando e que produziu o jornal ao longo de 11 anos. Era sua finalidade garantir uma informação sem hiatos nem divergências e que produzisse uma realidade distinta da imposta pela ditadura, constituindo um instrumento para ler o social e o político.
A acção política de Orlando Gonçalves prosseguiu com a sua participação na Comissão Democrática Eleitoral (CDE), em 1969 e 1973, e no 3.o Congresso da Oposição Democrática de Aveiro, em 1973. Libertado da prisão de Caxias por acção do Movimento das Forças Armadas em 25 de Abril de 1974, a sua acção política ocorre de forma institucionalizada como presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Oeiras, a que presidiu até às primeiras eleições autárquicas. Epigrafado na informação prisional como «adversário do Estado Novo» e «elemento de tendências comunistas», pode assumir-se como membro do Partido Comunista Português.
Imprimiu dinamismo à concretização de novas práticas e à resolução de problemas sociais no município de Oeiras, designadamente na auscultação dos anseios dos munícipes e na resolução da problemática habitacional. A sua acção autárquica e o seu contributo nas páginas do Notícias da Amadora ao interpretar o sentimento na freguesia da Amadora conduziram à separação administrativa de Oeiras e à criação em 1979 do novo município, o primeiro constituído após o 25 de Abril.
As dimensões política e jornalística relegaram para segundo plano a actividade literária. Escreveu muito, mas pouco se pode dedicar à literatura. Retomou, no entanto, a actividade editorial com a criação da chancela N.A.-Orion, cujo primeiro livro foi publicado em 1973, «Raízes da Nossa Força», com textos de Helena Neves e fotografias de Alfredo Cunha, que foi apreendido pela PIDE-DGS (Direcção-Geral de Segurança).
Sob essa chancela, em Julho de 1974, Orlando Gonçalves dá à estampa um novo livro da sua autoria, mas não era ainda ficção, era um testemunho seu. Editou «Caxias – Últimos Dias do Fascismo, Diário do Encarcerado», com uma segunda edição em 1977.
Retomou a ficção com a publicação dos romances «Os Melros Cantam na Primavera» (sob chancela da N.A.-Orion, 1986) e «Enredos da Memória» (Editorial Notícias, 1993).
Este último distinguido com o Prémio Literário Cidade da Amadora. As duas últimas obras de Orlando Gonçalves representam peças reflexivas de vivências de uma Lisboa que lhe foi próxima. O ambiente e as vidas de gentes desprovidas de condições materiais e de capital simbólico em tempo coercivo da ditadura, mas também as lutas que então se travavam. Apesar de ficção, existe nos dois romances a verosimilhança de acontecimentos passados.
Além de presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Oeiras (de 11 de Junho de 1974 a 3 de Janeiro de 1977), foi membro da Assembleia Municipal de Oeiras (Janeiro de 1977-Dezembro de 1979) e da Assembleia Municipal da Amadora (Dezembro de 1993-Novembro de 1994). Foi homenageado pela Câmara Municipal de Oeiras, enquanto presidente da Comissão Administrativa, e agraciado em 1989 com a Medalha de Ouro da Cidade da Amadora.
A Câmara Municipal da Amadora prestou-lhe homenagem póstuma em 1997 com a exposição «Notícias de Orlando Gonçalves» e, em 1998, o seu nome passou a designar o prémio literário instituído pela Câmara Municipal da Amadora. O Prémio Literário Orlando Gonçalves galardoa anualmente, e de forma alternada, uma obra de ficção narrativa e um trabalho jornalístico de investigação. Em 2021, na sua 24a edição, o prémio respeita à modalidade de ficção narrativa.
O horizonte de Orlando Gonçalves esteve sempre um pouco à frente do seu tempo.
Confessava-se «saudoso do futuro», embora também se confessasse «temeroso de quantas portas se abrem com as novas tecnologias». A questão por si suscitada era a de saber que mãos as iriam franquear. «Tudo depende do género de sociedade que viermos a edificar».
Não tinha dúvidas de que a sociedade do futuro se constrói com as novas aquisições do conhecimento científico e tecnológico. Mas considerava fundamental não abdicar de princípios e valores perenes que sempre fizeram a humanidade progredir e avançar.
Reflexão esta que enunciou no seu editorial de 8 de Fevereiro de 1990. Palavras que se justificavam por, nesse número 1.101, o Notícias da Amadora passar a ser produzido pela primeira vez em edição electrónica. «O N.A. entrou na era da informática. Este número no qual se podem ler estas linhas, rabiscadas a esferográfica,» fora produzido por meios digitais, escreveu.
Orlando César
Jornalista
15 de Julho de 2021