por Pedro Estorninho, encenador e escritor
Em mil novecentos e quarenta e oito, ou seja em pleno período da ditadura fascista que assolou Portugal, a companhia do teatro Nacional Dona Maria II teve a coragem, e diga-se ousadia e risco, de trabalhar, ensaiar e estrear «A Casa de Bernarda Alba», de Federico Garcia Lorca. Esse texto/peça maior, enorme grito de liberdade, preâmbulo contra a opressão, castração do indivíduo, enclausuramento da vida, do sonho e do direito a pensar.
Centenas de outros exemplos aqui poderiam ser dados. O teatro em todas as suas dimensões foi, e ainda é, um dos grandes polos de resistência anti-fascista. Desde sempre tem das mais preciosas ferramentas, que estão presentes no processo de conquista da democracia, da liberdade. Seja através dos seus criadores, da sua poderosa mensagem, do seu desejo de questionar, pensar e de convocar, mantendo aquele perigoso e velho hábito de conversar. Sim conversar e conhecer o outro.
Aqui está outro «alto perigo»: conhecer e dar a conhecer!
Mas não foram unicamente nas grandes salas, nos grandes teatros que se gritou, que se cometeu a afronta de resistir. Tal «grito» ecoou também em teatros universitários, amadores, associativos, independentes e claro no teatro operário. Que não se esqueça o exemplo dos refugiados políticos portugueses em França que (um dos grandes núcleos de oposição à ditadura) criaram o grupo Teatro Operário e a sua publicação CTO (cadernos do Teatro Operário), publicação essa que, chegava a centenas de mãos. Foi uma das grandes dores da cabeça da pide além portas, benditas enxaquecas! Por cá o teatro universitário em Coimbra e no Porto fazia o que podia e não podia, ali às portas de Lisboa um pouco mais tarde, quase a chegar a Sintra era o grupo de Mem Martins que ia arriscando, mas como disse centenas de exemplos aqui poderiam ser dados, exemplos e nomes como o Redol, o Santareno, o Rogério Paulo, a Céu Guerra, tantos, tantos.
Fico a dever ao papel todos os outros, mas a história e o teatro não os esquecem. Não apenas a nível nacional como é evidente, onde a ditadura imperava as ações repetiam-se, a resistência mediada pelo teatro acontecia, voltando a Lorca que na sua terra natal em plena miséria franquista, montou um pequeno teatro de marionetas que, actuava às horas das refeições para as crianças, tentando assim colmatar com palavras, com teatro as malgas vazias e mais o que faltava. Não era pão e circo, era teatro em vez de pão. E ele há tanto exemplo, tal como o trabalho de Bertolt Brecht com os operários das fábricas e os teatros amadores, evidente que também nas grandes salas.
Passando a fronteira de novo para o lado de cá, devemos também a esta gente que, antes de Abril não desistiu (felizmente maior parte ainda no activo) a tradução de centenas de livros, poemas, textos/peças, literatura política, notícias de jornais estrangeiros (tudo à mão caneta e papel) que de outra forma nunca nos chegariam às mãos. Traduções que circulavam pelo país, pelos tais grupos de teatro, casas particulares onde eram lidas cautelosamente, traduções que informaram e formaram politicamente centenas e centenas de jovens (e menos jovens) dando-lhes a conhecer que a vida existia e que existia de outra forma, que podia ser uma festa e não somente aquele «redil» onde tentavam respirar a medo.
Trabalhei alguns anos (felizmente) com um encenador que, explicava assim o porquê de se ter decidido pelo teatro: «Andava eu em Coimbra a estudar e inscrevi-me no teatro académico, no grupo. Estávamos no processo das escolha dos textos/peças que queríamos fazer, não escapou uma, enviávamos para a pide, a censura e voltava tudo para trás recusado. Tínhamos então uma peça do mestre Gil Vicente que seria para apresentar mais tarde e decidimos enviar essa, até essa nos proibiram de fazer. Aí pensei «Caramba se estes tipos têm medo de palavras com quinhentos anos, é porque isto é a sério!» e fiquei e cá continuo lutando!
Não será novidade para ninguém que, a primeira ação de uma ditadura fascista quando toma o poder é instaurar a censura, aniquilar a arte, a cultura, o teatro! Ainda hoje assim é! Mesmo neste mundo pós-modernista (seja lá isso o que for) a censura tomou outras roupagens, por exemplo a económica…
É um dever, é obrigatório que se diga «O Teatro é e Sempre Será Eminentemente Político!!! É e sempre será uma força de resistência!!!»
É a grande assembleia, a grande convocatória, a grande festa onde essa fantástica criação da humanidade «A Linguagem» se encarna, quebra os medos, propõe, questiona, pensa e comunica, conversa!!! O Teatro tem sido e é brutal com a brutalidade, violento com a opressão, impõe sempre o grande protesto, a palavra como ser revolucionário e não perdoa a tentativa de se tentar acabar com o sonho.
Lembro aqui um tal de Robespierre que, do alto da tribuna aquando da revolução francesa afirmou: «O teatro é a escola primária dos homens esclarecidos!», acrescento, da humanidade.
artigo publicado no boletim da URAP nº. 166 de 2021