por José Goulão, Jornalista
Está na altura de rever «Chove em Santiago», esse filme de 1976 incomodativo para as almas postas em sossego cada dia mais conformadas a viver na realidade paralela em que o sistema financeiro-económico-militar, através das classes políticas e dos meios mediáticos totalitários, nos pretende mergulhar sem alternativa.
«Chove em Santiago» é um filme que nos sacode, que simultaneamente nos fixa numa época e nos faz caminhar meio século, não apenas porque isto anda tudo ligado mas porque – heresia das heresias – há uma relação crua e sangrenta de causa e efeito entre 11 de Setembro de 1973, o ano do golpe fascista no Chile, e a realidade em que vivemos, «ocidentalmente» falando, em 11 de Setembro de 2023.
Por isso, ver ou rever «Chove em Santiago» não é um qualquer acto trivial e burocrático proporcionado por uma efeméride redonda, como fazem, por exemplo, a maioria dos deputados da Assembleia da República quando se trata de assinalar o 25 de Abril de 1974; é um regresso às origens do sistema financeiro-económico-militar e político em que vivemos – ao compasso das botas cardadas da NATO e das manobras dos oligarcas sem pátria que fazem mover a União Europeia.
Em poucas palavras, o filme «Chove em Santiago» do chileno Helvio Soto, resultante de uma produção franco-búlgara (nos tempos em que a Bulgária era um país), reproduz com fidelidade os acontecimentos do dia 11 de Setembro de 1973, quando um golpe militar derrubou o governo constitucional da Unidade Popular do Presidente socialista Salvador Allende e instaurou uma ditadura fascista. Tratou-se, segundo a linguagem mais comum, do «golpe de Pinochet», o general que o comandou operacionalmente e assumiu a ditadura. Como nos demonstra o filme, porém, foi um golpe dos Estados Unidos da América para repor «a normalidade», três anos de conspiração e sabotagem depois de «os marxistas» terem ganho as eleições gerais livres e democráticas. Esta prática terrorista continua bem viva hoje sempre que as eleições aqui ou ali não dão os resultados pretendidos por Washington ou Bruxelas. Então haverá golpe ou tentativa de golpe e sanções para matar à fome os povos que não se comportaram como seria suposto.
O Chile não foi, por isso, cenário único para um golpe norte-americano. Aconteceu o mesmo no Brasil, na Argentina, na Bolívia, no Peru, no Paraguai, no Uruguai, enfim através de todo o «quintal das traseiras» da «democracia americana». Dezenas de milhares de seres humanos, defensores da democracia, da liberdade e da justiça social, foram assassinados e muitos continuam «desaparecidos» para «corrigir» quaisquer «desvios» à ordem imposta por Washington, violando constituições em nome da «normalidade constitucional».
Um golpe estratégico
Se «Chove em Santiago» – oportunidade para usufruirmos de momentos de interpretação por históricos do cinema como Bibi Anderson (uma das deusas de Bergman), Jean-Louis Trintignan e Annie Girardot (numa breve incursão à magia do Nouveau Cinema francês) – nos fixa num determinado momento histórico, o facto mais importante é que tem uma actualidade transcendente.
De certa forma continua a «chover em Santiago» – a senha usada pelos esbirros do golpe – porque a instauração do fascismo no Chile abriu uma porta estratégica para o sistema financeiro, económico e político que domina actualmente o mundo e que pretende ter uma amplitude globalista através de mecanismos que o próprio George Orwell não conseguiu antever. Exagero? Acompanhemos a acção do Fórum Económico Mundial, e não apenas nas suas cimeiras anuais em Davos, e saberemos como se fabrica o caminho para «não termos nada e sermos felizes» sob um fascismo planetário.
O golpe de 1973 no Chile, ditadura fascista pura e dura, serviu de guarda-costas à primeira aplicação da ortodoxia económica neoliberal num país, através de um universo de malfeitorias sociais interligadas que se tornaram, ao longo de 50 anos, as alavancas do sistema de sociedade em que vivemos na generalidade do chamado «mundo ocidental» – e não só.
Privatização total dos sectores produtivos, económicos e financeiros, desemprego, eliminação dos mais elementares direitos laborais (a infindável desregulação do mercado laboral), desmembramento dos sectores públicos de saúde, educação, habitação, eliminação gradual dos mecanismos de soberania, privatização da segurança social, trabalho precário, escravatura, agravamento terrorista das desigualdades sociais, combate aos direitos sindicais e muitas outras acções que cada um de nós conhece por experiência própria tiveram o seu primeiro teste em bloco no Chile de Pinochet. O aparelho económico da ditadura foi ocupado pelos «Chicago Boys», os discípulos dos grandes teóricos da anarquia e selvajaria capitalistas. Através das suas práticas demonstraram-nos que o capitalismo a sério não pode admitir quaisquer preocupações sociais e assim espalharam a sua palavra e actos pelo mundo inteiro.
Margaret Thatcher olhou para o regime de Pinochet e sentiu inveja. Lamentou não o reproduzir por inteiro (sobretudo liquidando a oposição) por causa das exigências constitucionais britânicas, mas conseguiu, juntamente com Ronald Reagan nos Estados Unidos, impor a parte económica da ditadura em regime de «democracia». A partir de então, o processo adquiriu uma dinâmica vertiginosa de absorção neoliberalista das ideologias associadas ao capitalismo, à qual nem os socialistas nem os sociais-democratas escaparam, como está demonstrado.
O Chile de Pinochet testou e exportou o fascismo económico, a expressão que, por pudor, muitos se escusam a usar enquanto as sociedades «civilizadas» por ele modeladas vão impondo a ideologia única (capitalismo selvagem), a opinião única, a marginalização das oposições por uma classe financeira-económica-militar-política-mediática a caminho do totalitarismo.
Falar em fascismo económico é um atrevimento; e o antifascismo tornou-se, para a opinião dominante, uma aberração, um anacronismo com que apenas alguns se preocupam, ao que parece por mania da perseguição.
Entre as suas muitas perversidades, a selvajaria neoliberal reinante tem ainda esta: a de negar o nazi-fascismo mesmo que se meta pelos olhos dentro. O chefe de Estado da República Portuguesa nascida da revolução antifascista do 25 de Abril acaba de honrar o nazi ucraniano Volodymyr Zelensky com a «Ordem da Liberdade». Zelensky não é nazi? O seu regime adoptou a herança ideológica, política, xenófoba e racista do banderismo (de Stepan Bandera), afirmado na prática através da colaboração sanguinária com o regime de Hitler. Poucos dias antes de receber o Chefe de Estado português, Zelensky teve uma reunião (os vídeos confirmam-no) de planeamento de guerra com Andriy Biletsky, conhecido como o «führer branco», chefe do esquadrão da morte nazi-atlantista denominado Azov.
A obra teórica de Biletsky, que se fundamenta no princípio de «liderar as raças brancas na cruzada final contra os sub-humanos dirigidos pelos semitas», é ensinada nas escolas e inspira a guerra lançada pelo poder «ucraniano puro», mecanismo segregacionista estabelecido por lei de 2021 contra as minorias étnicas do país.
Pinochet sentiria inveja de Biletsky e de Zelensky. Marcelo Rebelo de Sousa condecora-o, agora que o 25 de Abril vai fazer 50 anos. E o primeiro-ministro, António Costa, financia-o com pelo menos 250 milhões de euros (valor que não inclui o armamento enviado para a Ucrânia e para a sucata) extorquidos aos portugueses.
Continua «a chover» e não apenas em Santiago. Mobilizar uma grande vaga antifascista é uma resposta urgente.
artigo publicado no boletim da URAP nº. 174 de 2023