por José Baptista Alves, Coronel, militar de Abril
Comemorar o 25 de Abril de 1974, festejar o derrube da ditadura fascista de Salazar e Caetano pela acção gloriosa do MFA, homenagear os militares de Abril, afirmar os valores de Abril e as conquistas da Revolução, nascidas da aliança histórica do povo e das suas Forças Armadas, e homenagear os resistentes antifascistas que não deram tréguas à ditadura e mantiveram acesa a esperança na liberdade, têm sido, ano após ano, em todo o país e em todos os locais onde existem comunidades de portugueses, objectivo primeiro de afirmação cívica do nosso povo.
A grandiosidade e a força das manifestações populares, ao longo de todos estes anos, sem quebras nem desânimos, são bem a prova provada do apego
aos valores da Revolução de Abril, «esse que foi o momento mais luminoso da História de Portugal».
Estamos a falar do maior salto civilizacional de toda a nossa História: em pouco mais de 500 dias, a sociedade portuguesa deixou de ser uma sociedade vergada por uma feroz ditadura (que prendia, torturava e matava opositores), amordaçada, afastada dos ganhos civilizacionais do seu tempo, empobrecida até ao limite do concebível e vivendo uma guerra colonial que encaminhava o país para uma enorme catástrofe, para se alcandorar prenhe de esperança numa proposta de sociedade livre, democrática e justa que a CRP de 1976, uma das mais progressistas do Mundo, configura.
É bom lembrar que à data do 25 de Abril de 1974, a ditadura, já sem Salazar, se caracterizava como atrás descrito, Caetano limitar-se-ia a mudanças cosméticas que em nada alterariam a situação: a PIDE, passou a chamar-se Direcção Geral de Segurança (DGS); a Censura, Exame Prévio; a União Nacional, Acção Nacional Popular(ANP) etc. Todo o aparelho de repressão fascista se manteve sem alterações significativas.
É neste contexto que o MFA inscreve no seu programa, apresentado ao povo português logo no próprio dia 26 de Abril de 1974, como medidas imediatas, de entre outras:
• A destituição do Presidente da República, do Governo e de todos os governadores civis e governadores-gerais das províncias ultramarinas;
• A extinção da ANP;
• A extinção da DGS (PIDE), Legião Portuguesa e Mocidade Portuguesa;
• A abolição da censura e exame prévio;
• A amnistia de todos os presos políticos.
E, como medidas de curto prazo, a serem implementadas pelo Governo provisório:
• A extinção dos tribunais plenários e a garantia da independência e dignificação do poder judicial;
• Liberdades políticas dos cidadãos;
• Liberdade de reunião e associação;
• Liberdade de expressão e pensamento;
• Reconhecimento de que a solução das guerras do ultramar era política e não militar;
• «Uma política económica, posta ao serviço do povo português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia antimonopolista;
• «Uma nova política social que em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses.»
Vai portanto competir aos governos provisórios a concretização destas medidas, claramente expressas no Programa do MFA, legitimadas pela esmagadora maioria da população portuguesa, em particular pela classe trabalhadora, como ficou, desde logo, bem demonstrado na maior manifestação de sempre: O primeiro 1.º de Maio em liberdade.
Um poderoso movimento popular, nas ruas, nos campos, nas fábricas, ganha consciência dos seus legítimos direitos e dispõe-se a lutar por eles, em aliança com o MFA - comprometido este com os desígnios do seu Programa - em particular durante os governos presididos por Vasco Gonçalves (II, III,IV e V Governos Provisórios). E é, desta gesta e deste período, que nasce o Portugal de Abril, construído sobre um valioso legado de Conquistas da Revolução que, de forma insofismável, se encontram plasmadas na CRP de 1976:
• Criação do salário mínimo e pensão social (3.300$, abrangendo cerca de 50% dos trabalhadores por conta de outrem e mais de 68% dos trabalhadores da administração pública e nível mínimo das pensões de reforma em 50% do salário mínimo, o que resultou num aumento da pensão mínima de 800$ para 1650$ para os sectores da indústria e serviços;
• Direito à habitação para todos (a situação herdada da ditadura, registava 25% da população vivendo em barracas e habitações degradadas, sem as condições mínimas de habitabilidade;
• Igualdade de direitos (era vedado às mulheres, o acesso a cargos do Ministério da Justiça e da Administração Local e o Código do Processo Penal registava ainda resquícios de tratamento discriminatório relativamente à mulher, em particular de tratamento do cônjuge varão relativamente a certos tipos de crime);
• Reconhecimento do direito à independência das colónias e consequentemente, o fim da guerra colonial;
• Direito à greve;
• Subsídio de desemprego;
• Educação para todos (a situação herdada da ditadura registava 26% de analfabetos e taxas de escolarização baixíssimos: educação infantil 6%, ensino básico 65%, ensino secundário 25% e com acesso ao ensino superior, apenas 418 em cada 100.000 habitantes);
• Saúde para todos (grande parte da nossa população vivia afastada de cuidados de saúde, tendo, desde logo, o I Governo Provisório, iniciado medidas tendentes à criação de um serviço nacional de saúde ao qual tivessem acesso todos os cidadãos e o IV Governo, presidido por Vasco Gonçalves, avançado com o Serviço Médico à Periferia, passo decisivo para a criação do Serviço Nacional de saúde, que viria a ser criado em 1979);
• O Poder local democrático, uma das mais belas conquistas de Abril.
E, poderia ainda acrescentar muitas mais a estas conquistas de que ainda hoje desfrutamos - algumas tendo sofrido limitações e/ou condicionamentos em consequência das 7 revisões constitucionais precedentes - ou acrescentar algumas das mais importantes conquistas entretanto liquidadas pela voragem neoliberal dominante, como foi o caso da Reforma Agrária, das Nacionalizações e do Controlo da Gestão.
E, não se diga, como ontem, e hoje, alguns pantomineiros querem fazer crer, que se tratou de excessos revolucionários, pois, para além da sua plena integração na Lei Fundamental, o próprio Programa do I Governo Constitucional, ao definir os grandes objectivos da política do Governo, se propunha:
«Consolidar as grandes reformas trazidas pela Revolução, tais como a política de nacionalizações, a Reforma Agrária e o controlo de gestão, nos termos das leis em vigor e no respeito da Constituição.
— Tais reformas hão-de considerar-se irreversíveis porque esse é o sentido ineludível dos sucessivos votos populares.»
Se agora nos lembrarmos que a situação internacional, na altura (1974 e 1975), era de depressão económica generalizada e que, também na mesma altura, houve que alojar e integrar 650.000 cidadãos retornados das ex-colónias, mais orgulhosos ficamos daquele luminoso período da nossa história, tanto mais quanto a situação económica portuguesa, no início de 1976, se apresentava «surpreendentemente saudável», nas palavras escritas, «preto no branco», em relatório insuspeito, patrocinado pela OCDE.
É tudo isto, esta iniludível realidade, do antes e do depois do 25 de Abril de 1974, que se tem procurado esconder das novas gerações, um pouco pela cegueira endémica de alguns e principalmente porque os derrotados em Abril e seus sucedâneos, então de forma sub-reptícia e hoje às claras, a tentam apagar.
Acordar é preciso!
artigo publicado no boletim da URAP nº. 176 de 2024