por Jerónimo de Sousa, Deputado constituinte e ex-Secretário-Geral do PCP
O 25 de Abril de 1974 e a Constituição da República, aprovada em 2 de Abril de 1976, são inseparáveis. Ela é, na sua versão original, o retrato da Revolução. Por isso, desde o momento da sua construção e até aos nossos dias teve, tal como a Revolução, inimigos declarados que em sucessivas revisões a mutilaram e empobreceram, limitando o seu alcance e conteúdo progressista, mas também inimigos dissimulados, como se tornou evidente nas políticas governativas de mais de quatro décadas de política de direita, protagonizados por sucessivos governos.
Insidiosos adversários que nunca se conformaram com o seu projecto libertador e emancipador e com as grandes conquistas e realizações da Revolução que são a matriz fundacional da Constituição de Abril. Nunca se conformaram que nela ficasse inscrito um amplo conjunto de direitos políticos, económicos, sociais e culturais que fizeram dela uma das mais avançadas Constituições do mundo.
Não se conformaram com a liquidação do capitalismo monopolista, sustentáculo do regime fascista. Nunca aceitaram as nacionalizações e a Reforma Agrária. Nunca se conformaram com a institucionalização de um regime político democrático, que assumia a liberdade em toda a sua plenitude e que nela ficassem consagrados importantes direitos dos trabalhadores e do povo, como o direito ao trabalho, à segurança social, à saúde, à habitação, ao ambiente e qualidade de vida, à educação, à protecção na infância, na juventude, na deficiência, na terceira idade. Nunca admitiram que dela brotasse o imperativo de um projecto de construção de uma sociedade melhor, mais justa e mais fraterna.
É um facto indesmentível que as forças conservadoras, políticas e sociais, os grandes interesses económicos e financeiros e os grandes senhores da terra, nunca se conformaram com o projecto de sociedade que dela emana. A sua intervenção e a vida política das últimas décadas o comprovam. Isso está patente nas sete revisões constitucionais que a mutilaram e a empobreceram. Revisões que constituíram significativos retrocessos em relação a alguns dos seus aspectos fundamentais, nomeadamente no que diz respeito à Constituição económica e social, mas também no plano da soberania nacional, em resultado do processo de integração na União Europeia.
A Constituição económica e social sofreu, logo em 1989, um gravíssimo retrocesso. Foi eliminado o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, concedendo ao governo poderes para reprivatizar as empresas nacionalizadas. Foi eliminada a referência constitucional à reforma agrária. Foi eliminado o princípio da gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde. As trágicas consequências destas alterações estão bem à vista na sociedade portuguesa de hoje com o domínio do capital monopolista, particularmente estrangeiro, dos sectores estratégicos e das alavancas fundamentais da nossa economia que passaram a estar ao serviço dos seus exclusivos interesses, pondo em causa de forma dramática a nossa soberania e o nosso direito ao desenvolvimento.
Os executores da política de direita sempre fizeram da Constituição o bode expiatório dos males do país para esconder as consequências nefastas da política de recuperação capitalista e monopolista que levaram a cabo, contra Abril e a Constituição.
Vimo-los recorrentemente a afirmar que a Constituição não permitia o desenvolvimento do país, que era um documento ideológico, como se os seus adversários não tivessem ideologia e as forças políticas que se lhes opunham fossem neutras.
Vimo-los em vários momentos promover um brutal ataque à separação de poderes que a Constituição consagra, enquanto limite e fundamento dos poderes do Estado, desde a teoria das forças de bloqueio de Cavaco Silva até à teoria de Passos Coelho de que um país em crise não se podia dar ao luxo de ter Constituição.
O que os executores da política de direita sempre tentaram esconder é que a Constituição, longe de ser um obstáculo ao desenvolvimento do país, era, e é, um obstáculo à concretização dos seus desígnios de destruição de direitos fundamentais do povo português.
Não foi a Constituição da República que impôs o desastroso rumo governativo que conduziu o País à difícil situação em que hoje se encontra. Uma situação marcada por níveis de reduzido crescimento económico, particularmente a partir da entrada no Euro, por uma contínua liquidação do aparelho produtivo e dos sectores estratégicos, pelo agravamento dos défices estruturais, como o produtivo e o tecnológico, por uma injusta distribuição do rendimento nacional, cavadas desigualdades sociais e crescentes desequilíbrios regionais.
Foram décadas de práticas governativas, concebidas e executadas contra os princípios e valores da Constituição.
Práticas governativas que têm ido ao encontro das pretensões do grande poder económico e orientadas para a restauração, consolidação e reforço do capital monopolista, à custa do património público, sucessivamente alienado, tal como os instrumentos de intervenção e condução das políticas económicas, deixando aos grandes grupos económicos a mão livre ao domínio da economia do País e à sua insaciável sede de concentração e centralização de capitais.
Práticas governativas e de políticas marcadas pela liquidação de direitos dos trabalhadores, pela desvalorização dos salários, pela desregulação dos horários, pela precariedade, pela liquidação de direitos sociais e pela desvalorização e degradação das funções sociais do Estado, com o ataque ao Serviço Nacional de Saúde e à Escola Pública.
É essa prática continuada de décadas de políticas executadas à revelia da Constituição da República que ainda hoje está em curso.
Quando se atingem os rendimentos do trabalho, impondo a perda do poder de compra dos salários e das pensões. Quando se permite a agudização das injustiças e desigualdades, com o aumento do custo de vida para a maioria do povo a contrastar com os lucros milionários dos grupos económicos.
Quando se reduz o investimento público ou se promove a degradação dos serviços públicos que deviam garantir os direitos à saúde e à educação dos portugueses. Quando se recusa garantir os direitos à habitação ou à protecção social dos mais idosos, dos desempregados, dos doentes, das pessoas com deficiência ou dos jovens. Quando se permite a degradação da justiça a regressão da política cultural. Quando tudo isso acontece, é a Constituição de Abril que continua por cumprir.
Se a Constituição fosse respeitada e efectivada nos seus princípios, se fosse concretizada na sua concepção ampla de democracia política, económica, social e cultural, se os direitos e projecto que consagra fossem realidade, Portugal seria um País diferente para melhor, mais desenvolvido, com menos injustiças e desigualdades sociais, com melhores condições para enfrentar os desafios que o futuro coloca.
É no cumprimento da Constituição que se encontra o sentido da resposta aos problemas que atingem o povo e o País. É pela exigência do seu cumprimento que se impõe continuar a lutar. A Constituição não se defende a si própria! Nos trabalhadores, no povo português, reside a sua força principal.
artigo publicado no boletim da URAP nº. 177 de 2024