por António Avelãs Nunes, Professor universitário e Secretário de Estado em governos provisórios (1974-75)
Não conheço nenhuma prova de que, por parte do PCP ou da chamada esquerda militar (os ditos gonçalvistas), tenha sido preparado algum golpe de estado para implantar em Portugal um regime de tipo soviético. Nem os relatórios da CIA nem a correspondência oficial de Carlucci fazem qualquer referência a esta hipótese. Não houve, pois, nenhum 25 de Novembro de esquerda.
Vasco Gonçalves sempre foi claro: «o povo português deve ser o sujeito da sua própria História (…), o MFA não faz revoluções contra o povo»; o socialismo deve alcançar-se através de «uma via pacífica e pluralista para a democracia e o socialismo» [afinal, o programa político que viria ser plasmado na CRP/1976], objectivo que pode ser atingido com a garantia das Forças Armadas.
Mas o anticomunismo esteve presente desde o início. Ainda antes do 25 de Abril, antecipando que «alguma coisa iria acontecer», Mário Soares pediu aos seus amigos socialistas que ajudassem o PS, porque havia o perigo de os comunistas tomarem conta do País, alterando a relação de forças na Europa. No início de Maio/1974, já como ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares visitou vários países europeus, para pedir apoio político, logístico e financeiro ao PS, com o objectivo de disputar a hegemonia do PCP.
Vergílio Ferreira defendeu que «a revolução de Abril foi uma revolução comunista que não ousou dizer o nome, para não assustar». E Spínola falaria das «raízes comunistas do 25 de Abril»: o programa apresentado pelos capitães era, segundo ele, «o programa do Partido Comunista, que tinham copiado. Aí é que percebi que se preparava uma revolução comunista».
Até Carlucci reconheceu que o golpe de 11 de Março «foi desencadeado pela extrema-direita». Mário Soares foi mais papista que o Papa: «o golpe de 11 de Março foi encenado para servir os interesses dos comunistas». E acrescentou: «o que eu temia, naquela altura, era exactamente o contrário, era um golpe comunista». Sempre o anticomunismo.
Sabemos hoje que, a certa altura, Melo Antunes e o Grupo dos Nove admitiram a «inevitabilidade de um enfrentamento com a esquerda militar», que passaram a considerar o seu «inimigo principal». Alegando que os fins justificavam os meios, Melo Antunes reconheceu que «além das acções legais ou semi-legais a que deitámos mão para obter a supremacia militar, também desenvolvemos acções clandestinas para nos prepararmos para uma confrontação com a esquerda militar que eu julgava inevitável. O nosso caminho era estrangular essas forças, as quais, em minha opinião, acabariam por reagir violentamente. Ou saltava o PC ou a Extrema Esquerda. E para isso tínhamos uma organização militar em marcha».
Mais tarde, Melo Antunes reconheceu que o Documento dos Nove foi «um acto de subversão que não tinha nada que ver com a ética militar. A essa luz, ele era absolutamente condenável». E hoje sabemos que Carlucci teve reuniões com os Nove durante o período de elaboração do Documento e que teve conhecimento dele antes de ele ser público (Vítor Alves admitiu que foi ele que o deu a conhecer a Carlucci).
Vasco Lourenço garantiu que «o Grupo dos Nove nunca distribuiu ou autorizou a distribuição de armas», mas admitiu que isso pudesse ter sido feito por «alguns elementos» do Grupo que «tinham um projecto próprio». Hoje sabemos que, nas vésperas do 25 de Novembro, Ramalho Eanes mandou entregar armas a civis do PS, havendo quem admita que a distribuição de armas a civis andaria a ser negociada com elementos da rede bombista (cinco G3 deste lote foram depois encontradas no automóvel de um bombista preso).
É claro que este comportamento potenciou o despoletar de uma guerra civil, que alguns defenderam abertamente. Galvão de Melo (então deputado eleito pelo CDS), disse claramente: «entre uma guerra civil e um governo comunista, prefiro a guerra civil.» Felizmente, o risco de incêndio foi apagado porque Vasco Gonçalves, tal como Costa Gomes, não se cansaram de dizer publicamente: «Nós não queremos a guerra civil entre os portugueses.»
Perante este quadro, custa a entender que, em nota enviada a Kissinger em 22.7.1975, Melo Antunes admitisse que poderia implantar-se em Portugal uma «ditadura comunista pró-soviética». E que, em 23.11.1975, tenha dito ao Nouvel Observateur que «o PCP preparava a tomada do poder».
Tanto mais que, por declarações de importantes elementos do Grupo dos Nove (Melo Antunes, Pezarat Correia, Franco Charais), eles sabiam que as manobras de concentração de paraquedistas e outras forças no Norte do País «escondiam uma operação política de enorme envergadura, que visava o aniquilamento do 25 de Abril». Eles sabiam que Spínola preparava um golpe militar para 30.11.1975, «implicando sectores ‘radicais’ da Igreja Católica, o MDLP, militares do 24 de Abril e contando com a intrigante cumplicidade de dirigentes partidários (…)», um golpe que visava «suspender as actividades da Assembleia Constituinte e evitar a independência de Angola».
A opção (mantida até ao próprio dia 25 de Novembro) de considerar a esquerda militar como inimigo principal é tanto mais estranha quanto é certo que, em 7.8.1975 (data da publicação do Documento dos Nove), Melo Antunes admitia ser possível construir em Portugal uma sociedade «onde o socialismo fosse a realização plena da democracia». O que poderá justificar uma mudança tão radical do pensamento de Melo Antunes num intervalo de 15 dias, entre 22.7.1975 e 7.8.1975? Acreditaria que seria possível implantar aqui uma sociedade socialista sem o concurso da esquerda militar (sem a unidade do MFA) e sem a colaboração do PCP? Confiava na força militar e política dos Nove? Desconhecia que Eanes (homem de confiança do Grupo) participava activamente, pelo menos desde Jan/1975, nas estruturas do grupo spinolista que visava destruir o MFA para entregar todo o poder a Spínola? Ignorava que Eanes foi convidado a «tomar conta da organização interna do MDLP» e que esteve «sempre ao corrente de tudo» o que fazia este grupo terrorista?
O próprio Vasco Lourenço reconhece que o grupo militar que trabalhava em ligação directa com ele «tinha outras ligações que não ao Grupo dos Nove», que «atrás do Grupo dos Nove estava acobertada toda a direita e extrema-direita» e que «o grupo saudosista do 24 de Abril, que se acobertou atrás do Grupo dos Nove, queria sangue, muito sangue». E é público que dois elementos do Grupo dos Nove (Vítor Alves e Canto e Castro) mantiveram contactos com o MDLP, sendo que este último «colaborou efectivamente com as actividades subversivas» dos grupos terroristas que puseram Portugal a arder. Foi o próprio Melo Antunes quem disse que, naquela altura, «o PS e Mário Soares, em nome de uma certa ideia da esquerda, aliaram-se ao que de pior havia nas Forças Armadas», de tal modo que o ELP e o MDLP se tornaram os «aliados militares preferenciais do PS». Era com esta gente que o Grupo dos Nove queria construir uma sociedade socialista?
(continua na próxima edição)
artigo publicado no boletim da URAP nº. 178 de 2024