Entrevista a Domingos Abrantes, resistente antifascista desde os 17 anos, várias vezes preso, num total de 11 anos, e um dos participantes da fuga de Caxias em 1961. Foi membro do Comité Central do PCP de 1963 a 2016. Foi deputado à Assembleia da República pelo círculo de Setúbal de 1976 a 1991, e pelo círculo de Lisboa de 1991 a 1995. Em Dezembro de 2015, foi eleito para o Conselho de Estado pela Assembleia da República, tendo tomado posse como conselheiro de Estado em Janeiro de 2016, sob a presidência de Aníbal Cavaco Silva. Cessou funções em 2022.
Quando se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, a situação política em Portugal e no mundo é perigosa para os valores da democracia, da liberdade e da paz. Como antifascista e lutador por estes valores, preso político nas cadeias do Aljube, Caxias e Peniche, como vê a correlação de forças no panorama político português e o ascenso das forças de direita e populistas?
Vejamos a situação política geral no mundo capitalista, europeu e norte-americano. É extremamente preocupante porque estes elementos fascistas não se comparam com os dos anos 30. Porque a separação das águas não é clara, ou não é nítida. A social-democracia e as forças democráticas, que se dizem democráticas, e a esquerda estão hoje à mesma mesa com fascistas assumidos. E, portanto, há uma legitimação e uma normalização das forças fascistas, que tiveram altos cargos no passado. Temos hoje sentados à mesa fascistas e neonazis assumidos a discutir o destino dos povos, os nossos destinos. Isto é um problema complicadíssimo e grave. Porque, no fundo, significa a legitimação destas forças. Portanto, não precisam de outras razões, têm o poder. O fascismo hoje está em organizações supranacionais a decidir calmamente, democraticamente, como dizem, os destinos dos povos. A terceira dificuldade está no campo social que é discutido em colaboração com estas forças.
Basta ver com quem António Costa, agora presidente da Comissão Europeia, foi acompanhado a Kiev. Este facto leva não só a compromissos nas decisões, na vida dos povos, como leva ainda a coisas mais graves. Há uns dois anos, talvez, a ONU apresentou uma moção, digamos assim, no sentido de alertar para os perigos do renascimento dos grupos neonazis. Nem um único país da NATO, nem um único país da União Europeia, votou a favor, incluindo Portugal, naturalmente porque existem compromissos. É um absurdo votar contra uma moção que condena esta ideologia.
No dia 5 de Novembro foi apresentada também uma moção no sentido de combater a proliferação e a propaganda de ideologia nazi. Aconteceu a mesma coisa, votaram todos contra. Portugal, inclusive. Isto tem um significado e torna mais difícil, naturalmente, a nossa intervenção e a defesa dos povos.
Há hoje um compromisso entre forças que se dizem democratas e de esquerda com forças fascistas, o que aumenta o campo de intervenção destas forças quer na política, quer na política económica, social, institucional, e ainda nos problemas da guerra e da paz. Isto torna um quadro extremamente difícil. Eu sou uma das pessoas que pensa que se este ciclo não for interrompido possamos voltar a viver uma nova época fascista. Isto é muito grave, sim, é gravíssimo, mas tenho esta convicção. Não vale a pena a gente estar a mentir. Não há diminuição, não há interrupção, há um crescimento. Portanto, as forças antifascistas têm de considerar isto como um problema real. E como é que isto se combate. Há que combater as políticas que geram o crescimento dessas forças.
Nós, no nosso caso, usamos a luta pelos valores de Abril, que são contrários ao fascismo. Nasceram com a derrota do fascismo. Valores como a defesa da soberania, a melhoria das condições de vida do povo, o reforço dos direitos democráticos, são condições fundamentais para barrar o caminho ao fascismo, a par do esclarecimento, do debate ideológico. Há uma terceira questão aqui que é a dialéctica do nacional e do internacional. As forças anti-imperialistas têm de considerar esta frente de trabalho como uma questão decisiva, e separar águas. Não se pode fazer unidade antifascista com um Costa que vai a Kiev acompanhado por uma pessoa de um país que tem um governo e umas forças armadas fascistas. Isto, sem que haja a mais pequena palavra sobre o fascismo e os nazis, na Ucrânia, sobre os milhares de pessoas que estão presos, alguns do seu partido. Isto é de uma gravidade enorme.
A constituição actual da Assembleia da República, de que foi deputado entre 1976 e 1995, traduz essa viragem à direita. O que pensa da recente comemoração na AR, com pompa e circunstância, do 25 de Novembro de 1975, que algumas forças políticas querem equiparar ao 25 de Abril de 1974?
As comemorações do 25 de Novembro estavam no horizonte já há muito tempo, são a antecâmara da preparação dos 50 anos do 25 de Novembro. O que está no horizonte é fazer dos 50 anos do 25 de Novembro a grande data. A grande data da contra-revolução, a que chamam da revolução. Isto tem uma gravidade enorme porque isto não é casual. Se há data que garantiu a liberdade e a democracia não foi o 25 de Novembro foi o 11 de Março. No 11 de Março de 1975 comemora-se a derrota de um golpe fascista. Pode haver diferenças de opinião, achar que aquilo foi turbulência revolucionária, mas não é um facto. No 11 de Março o que estava em curso era um golpe fascista. E, portanto, se quisermos assinalar datas para além do 25 de Abril, é o 11 de Março.
A 25 de Novembro começou a contra-revolução. E não é por acaso que a extrema-direita o assume como a sua data. Os militares de Abril foram praticamente todos afastados, até o Grupo dos Nove. Na segunda leva foram todos afastados. Não ficou nenhum. Portanto, o 25 de Novembro é um golpe assumido, em que houve uma aliança de esforços de forças ultra-reaccionárias com o Partido Socialista. Até agora está escondido quem esteve, quem não esteve, quem conspirou…
Foi um retrocesso institucional e houve outros partidos que não tomaram distanciamento em relação a este problema. Ouvi vários dirigentes do Partido Socialista assumirem o 25 de Novembro como uma grande data da democracia portuguesa. Pode ter a ver com a participação de Mário Soares. A verdade é que o Partido Socialista foi o instrumento político do golpe do 25 de Novembro e, portanto, há socialistas que são fiéis a isso. Na verdade esta data representa uma grande vitória da direita e da extrema-direita.
O que considera que se deve fazer para manter os princípios inscritos na Constituição da República, como o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública, o direito à habitação, salários compatíveis com o custo de vida, entre outros?
Estão ameaçados, como é evidente. E estão ameaçados devido à política que tem sido seguida ao longo dos últimos anos, desde o 25 de Novembro. É preciso muita resistência, muita luta contra as conquistas da direita. Não há aqui nenhum mistério. Infelizmente, é um facto que o Partido Socialista, nas coisas básicas, se entende com a direita desde há décadas.
Recuperar a memória é hoje um problema essencial. Um problema que atravessou toda a oposição. O Partido Comunista, os republicanos, os democratas liberais, e depois já o Partido Socialista queriam liberdades políticas. Isto é, defendiam uma impossibilidade. Queriam mudanças políticas, portanto, eleições, liberdades gerais. Quanto aos trabalhadores já eram mais ambíguos. Nunca foi claro, não queriam tocar nas estruturas económicas. Isto é, queriam uma impossibilidade que era haver mudanças políticas, sem tocar nos responsáveis, nos beneficiários do fascismo. Isto foi o grande problema. Esse problema pôs-se com toda a acuidade no 25 de Abril, e depois no 11 de Março. No 11 de Março provou-se - depois da revolução e da contra-revolução - que não eram possíveis amplas liberdades, melhoria das condições de vida, mantendo intacto o poder económico, que era o sustentáculo do fascismo. Sempre defendemos, e acho que a vida provou a justeza porque esse problema está hoje na ordem do dia, a incompatibilidade de um regime de amplas liberdades, de melhoria das condições de vida, com a reconstituição dos grupos económicos e financeiros.
Esse é um problema que temos hoje. Se queremos ter serviços de saúde, ensino democrático, amplas liberdades, melhoria das condições de vida do povo, não é compatível com a reconstituição e com o domínio dos grupos económicos e financeiros e com o imperialismo, visto que somos um país cada vez mais dependente. Há uma luta, naturalmente, do dia-a-dia, para a defesa desses direitos. A questão continua de pé. É a luta pelos valores de Abril que implica a liquidação dos grandes grupos económicos e financeiros associados ao imperialismo.
Teve, com a URAP, um papel importante na transformação do Forte de Peniche em Museu da Resistência e Liberdade. Qual é, para si, a importância da memória, sobretudo para a geração actual e para os mais jovens?
Já referi há pouco que temos hoje uma tarefa inadiável que é obrigar todos, independente de onde se situem, os que estão pela liberdade, que estão pela democracia, que estão por um país soberano, à recuperação da memória. É fundamental. Vivemos há alguns anos toda uma linha de apagamento da memória. Ao apagamento da memória, acrescenta-se o branqueamento do fascismo. Há até quem diga que não houve fascismo! Falar de fascismo, implica falar dos responsáveis. Não foi só Salazar e a polícia, foram os grupos económicos sustentados, que apoiaram e que beneficiaram. Foram os grandes que beneficiaram. O fascismo existia para quê? O fascismo existia para isso, para que esses grupos económicos prosperassem. E portanto percebe-se que não queiram falar de fascismo, porque falar de fascismo significa falar dos que hoje estão novamente no poder. Porque o poder económico é que domina o poder político.
O apagamento do papel da resistência deve-se sobretudo ao facto de ter sido a resistência que determinou a natureza da Revolução de Abril. Percebe-se o ódio ao PCP, o ódio aos antifascistas. Sem essa resistência e sem essa a intervenção no 25 de Abril não se teria transfomado o golpe de Estado militar em revolução.
Isso liga-se com a questão do Museu do Peniche e primeiro com o Museu do Aljube. São espaços de memória para as jovens gerações. Lembremos que a grande parte da nossa população já nasceu depois do 25 de Abril. Portanto, nasceu em liberdade. A liberdade para ela é tão normal como respirar, é um dado adquirido. No contacto com os jovens, mesmo com pessoas mais avançadas, vemos que no seu posicionamento pesam muito as dificuldades atuais. Há também quem trabalhe para apagar o custo enorme que foi a conquista da liberdade. Se não houver uma política de esclarecimento sobre o número de vidas sacrificadas, os assassinatos, milhares de anos de prisão, os despedimentos, as arbitrariedades, a supressão dos mais elementares direitos dos homens e das mulheres, essas pessoas tenderão a posicionar-se à direita.
Por isso a batalha da memória é hoje fundamental. Uma batalha difícil porque os meios actuais postos à disposição para a revisão da história são gigantescos: comentadores, televisões, jornais.
Há hoje meios incomparáveis. A própria linguagem é utilizada para mistificações. Fala-se de populismo, fala-se de fascismo. O Hamas é terrorista, Israel é a maior democracia do Oriente, o imperialismo americano é a maior democracia do mundo... Há toda uma linha de intoxicação que torna tudo isto bastante complicado. Objectivamente e às vezes subjectivamente, essa gente facilita o caminho ao fascismo.
Há uma tese que deve ser recordada: o fascismo nunca chegou ao poder sozinho, existe alguém que nos abre o caminho. O anticomunismo, o António Costa – que foi uma grande decepção para mim - quando vai a Kiev acompanhado de uma fascista, para não referir outros, está a abrir o caminho. Isto hoje é um problema sério.
Voltando ainda ao museu. O museu foi uma grande vitória contra o apagamento da memória. É o primeiro ato que interrompe o processo de destruição da memória. O local já estava à venda.
O que aconteceu com a sede da PIDE é uma coisa monstruosa. Ser transformado num condomínio de luxo um centro de tortura, de assassinatos, é um insulto. Peniche esteve quase. É curioso e estranho que se formos ver tudo isto passou pelas mãos do Partido Socialista. A dificuldade em criar o Museu do Aljube, concessão do Forte de Peniche a privados, depois venda para um hotel de charme. A abertura do museu tem um enorme significado. É um lugar de memória e, sobretudo, a preservação de um espaço que é um símbolo odioso do sistema prisional. Isto não é pouco!
No plano internacional, o mundo atravessa várias guerras. As mais perto de nós, e que põem em risco a humanidade, são as da Rússia/Ucrânia e de Israel/Palestina. Ambas são apoiadas pelas forças imperialistas norte-americanas, a NATO e a União Europeia. Como acha que, neste cenário, se pode chegar à paz?
Nós estamos neste momento, objectivamente, mais próximo da guerra do que da paz. Estamos em guerra desde a queda da União Soviética. É um problema sério porque a guerra tornou-se a grande saída para o imperialismo, para a própria economia. Olhando para os orçamentos militares dos Estados Unidos e de outros países vê-se que, se não houver guerra, as suas economias têm problemas gravíssimos. A indústria do armamento, portanto, a guerra, tornou-se não só num problema de domínio, como sempre foi, mas também no grande filão para a economia americana, sobretudo para a economia americana. A Europa quer seguir o mesmo caminho. Portanto, para além da monstruosidade, das destruições, das imensas mortes, é a guerra que pelo custo dos armamentos salva essas economias. Há uma célebre frase que diz que “se vai para os canhões, não vai para a manteiga”. Essa frase que usámos muito no passado, devia hoje ser recuperada... Havia aqueles que jogavam no militarismo. Não no militarismo como solução mas para defender os interesses das classes, do complexo industrial militar. A lógica armamentista tem uma lógica incontrolável. Se não forem usados os armamentos, essas indústrias morrem. Digamos, o complexo industrial militar precisa de remover os stocks, precisa de funcionar e só há uma forma de funcionar, é fazer a guerra. Pensem o que pensarem, os que são pela corrida armamentista são a favor da guerra, não são a favor da paz.
O Costa agora foi oferecer à Ucrânia 18 mil milhões de euros quando estamos cada vez mais pobres numa Europa cada vez mais em decadência. Há milhões de pessoas sem trabalho, e há cada vez mais descontentamento. A Alemanha está numa crise gigantesca. E ao invés de dar resposta aos problemas que afligem as pessoas, gastam-se milhões e milhões e milhões para manter as cotações que favorecem as empresas de armamento. Estas coisas têm de ser ditas, porque não o assumem. Porque enganar é isso. Não venham dizer que estão a ajudar a paz e a democracia. Isso é uma falsidade.
Perante a gravidade da situação, qual é o papel que Portugal deveria representar para se conseguir a paz e como é que os portugueses podem forçar o governo nesse sentido?
Se há países que têm o dever de lutar pela paz um deles é Portugal. Porque o Portugal de Abril nasceu contra a guerra, contra o flagelo da guerra. Os valores de Abril são a paz, a luta pela paz, a luta contra a guerra, a luta pela amizade entre os povos. O problema é que todos os governos que têm existido até agora desde o período revolucionário violaram a Constituição. Todos violaram e isso não é um problema pequeno porque a Constituição é muito clara. Portugal tem de defender uma política de paz e amizade, contra a corrida aos armamentos e de apoio à luta libertadora dos povos. Todos, quer o Partido Socialista, a direita, o Presidente da República, rasgaram a Constituição. Já uma vez disse, num sítio oficial, que seria bom que os órgãos de Estado vissem quem são os responsáveis por isso. Porque se estivessem as páginas todas viam que estavam a violar a Constituição. É necessário lutar para que sejam cumpridos os procedimentos constitucionais.
Uma outra questão, que não é pequena, é a hipocrisia política. Porque esta gente toda fala na inviolabilidade das fronteiras como uma questão sagrada, no respeito pelo direito internacional, na Carta das Nações Unidas. São os mesmos, exactamente os mesmos, que não falam do roubo das terras aos palestinianos, não dizem uma palavra sobre Israel não aceitar uma única resolução, que bombardeiam e atacam. Os mesmos que apoiaram a guerra suja do Iraque. À luz do direito internacional os Estados Unidos invadiram o Iraque e El Salvador. Estes políticos são de uma hipocrisia tremenda e a hipocrisia mata a política. A luta pela denúncia da hipocrisia é uma batalha para a defesa da ética política. Se há normalidade para uns e não para outros, é o fim da política como princípio ético.
Portugal tem políticas inadmissíveis, como o apoio à anexação dos Montes Golã à Síria, sob o pretexto de que “temos aliados e temos de acompanhar os aliados”. Portugal está sempre na obrigação de acompanhar os aliados nas deliberações, na expropriação de territórios de outros países, e depois indigna-se com a Alcaida. Não tem nenhuma moral para isso.
entrevista publicada no boletim da URAP nº. 179 de 2024