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em O Passado no Presente - Pequenas Histórias da Resistência
Américo Leal
«Ainda hoje há gente com fome. Pessoas que querem comer e não têm. Porém, no regime salazarista, a fome era quase um estado geral para grande parte dos trabalhadores, com vários graus no que se refere a fome. [...] O que vos vou contar, que não constitui nenhum caso isolado, passou-se na década de 30 do século XX, creio que em 1938/39 e envolve o pescador conhecido pelo apelido de "Chula"»
«Ainda hoje há gente com fome. Pessoas que querem comer e não têm. Porém, no regime salazarista, a fome era quase um estado geral para grande parte dos trabalhadores, com vários graus no que se refere a fome. Digamos que, no que respeita a fome, existiam dois grupos de estados bastante diferentes: os que não conseguiam comer o que necessitavam para viver e por vezes não tinham sequer qualquer alimento para ingerir. Este grupo de pessoas raramente comia carne, o leite, a manteiga e outros produtos ricos da nossa alimentação não entravam. Mas havia também, em número considerável mas reduzido que o primeiro grupo, os que lutavam por sobreviver. Aqui a sua alimentação era muito mais pobre, mais incerta e com muitas refeições e dias sem comer em certas épocas do ano.
O que vos vou contar, que não constitui nenhum caso isolado, passou-se na década de 30 do século XX, creio que em 1938/39 e envolve o pescador conhecido pelo apelido de "Chula".
Chula era casado, sua mulher era operária conserveira, tinha um rebanho de filhos e nem sempre ia à pesca. Porque não tinha embarcação; porque com mau tempo os botes não se faziam ao mar e possivelmente também por outras razões, Chula não ia ao mar. Sua companheira só ia trabalhar quando a fábrica metia peixe e em certa quantidade para que pudesse ser chamada.
A fome neste lar era por vezes uma situação normal em grande parte do ano, principalmente no Inverno. Quase que se poderia dizer que a palavra de ordem que reinava em casa era de "salve-se quem puder". Por isso, cada pessoa do agregado, quando a panela ou tacho não ia ao lume, tratava de jogar a mão ao que houvesse, quando havia.
A dona de casa, em tais situações, se tinha pão, fazia um café de cevada a que, mesmo sem açúcar, migava uns miolos de pão na caneca para ingerir o que nessa época se chamava sopas de café. E era assim a refeição dela em dias de maior aflição.
Os filhos tratavam, à sua maneira, de se desenrascar, recorrendo muitas vezes aos "cerrados" à uva, ao figo e ao que podiam, quando a situação exigia medidas drásticas para sobreviverem. Neste caso, a história assenta num dos que conseguiram sobreviver. Os outros, e foram muitos, não resistiram à doença da fome, a tuberculose. O chefe de família, conhecido por Chula, fazia outro tanto pela vida. Se arranjava algum peixe na Ribeira ou na pesca, a família tinha refeição. Caso contrário, havia que procurar algo que levar à boca.
Eis que o Chula certo dia, apesar de estarmos já no Verão, recorrendo ao que muitas muitas vezes tinha feito mas que desta vez, ou porque a fome apertasse mais ou se sentisse bem a encher a pança, o Chula comeu figos de pita até que o seu apetite lhe dissesse basta. E de facto bastou, mas foi para que sofresse de "entupimento", tendo que recorrer ao hospital no dia seguinte.
O figo de pita é o fruto das piteiras mansas que na massa que o compõe entra cerca de 85% de grainha e 1,5% de massa com alguma humidade. O figo de pita é doce e gostoso. Tal como as camarinhas, deve ser ingerido com muita contenção para não provocar "entupimento". Actualmente muito poucas pessoas comem figos de pita ou camarinhas, e quando o fazem é em quantidade insignificante, quase sempre para lembrar tempos idos.
Mas no regime fascista, a fome impelia as pessoas a terem que utilizar tais produtos como forma de sobreviver e, neste caso, o Chula, ao ultrapassar a marca do razoável e depois de várias tentativas em vão par defecar, foi parar ao hospital de Sines. Hospital que não passava d de uma pequena instalação com um gabinete de atendimento diário com um médico e uma enfermeira, possuindo no 1º andar uma divisão com duas camas que só raramente funcionavam em caso de algum doente em situação muito precária.
Ao Chula valeu-lhe a pronta e corajosa decisão da enfermeira Felicidade Pona. Como os dois clisteres que lhe deu não resultaram, pô-lo de cu para cima e, com um gancho do cabelo resolveu a situação que já se apresentava dramática para o pobre homem. Outros, e muitos outros, estiveram a beira de lhes suceder o mesmo com os figos de pita e as camarinhas.
Na vila, ao conhecer-se a situação de extremo a que chegou o pescador Chula, não se julgue que os figos de pita e as camarinhas deixaram de servir de alimento. O que todos passaram foi a ter mais cuidado. Cuidado com a quantidade e com a preocupação de, quando a quantidade fosse exagerada, havia que em cima beber bastante água apesar de se sentir o estômago cheio e pesado.
Era assim para manter a vida nesse tempo em que, na batalha pela sobrevivência, era preciso que fossemos nós os vencedores.»
Américo Leal
O Passado no Presente - Pequenas Histórias da Resistência, URAP, Setúbal, 2004