O sonho tornou-se realidade: foi inaugurado o Museu Nacional Resistência e Liberdade, a 27 de Abril de 2024, 50 anos depois da saída dos últimos presos políticos daquela fortaleza sobre o mar, onde o regime fascista encarcerava, para cumprir pena, os homens condenados por lutar por um mundo melhor.
No pátio da fortaleza encontra-se o memorial, inaugurado em 2019, que lembra o nome de 2 626 presos entre 1934 e 1974. É daí que começa a visita ao museu, que só existe porque a unidade dos democratas - ex-presos políticos, familiares, antifascistas em geral e organizações que lutam pela preservação da memória, entre as quais a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) - foi mais forte do que o Decreto-Lei nº 161/2019, do XXI Governo Constitucional.
“Quando não se desiste e se luta por causas justas como esta pode demorar tempo, mas a força da razão e da luta acabam por vencer”, diria o coordenador da URAP, José Pedro Soares, quando interveio no final da cerimónia (ver intervenção).
O governo queria, designadamente, transformar uma das mais sinistras cadeia da ditadura, considerada como símbolo maior da resistência antifascista e da luta pela liberdade, numa pousada de luxo ao abrigo do Programa Revive.
Antes de entrarem no Forte, ao som do hino do MFA, milhares de pessoas vindas de todos os pontos do país encheram as ruas de Peniche num desfile encabeçado por ex-presos políticos e personalidades “erguendo de novo, os nossos cravos de Abril”, como diria o coordenador da URAP na sua intervenção.
“25 de Abril Sempre, Fascismo nunca mais”, lia-se na faixa da URAP. À subida para o forte a banda da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense toca Grândola, Vila Morena. A cerimónia no forte vai começar.
Guilherme Velez, presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa leu a mensagem do ex-preso político António Borges Coelho. O historiador diz que os museus “guardam memórias que marcam o nosso quotidiano”, mas este “é um museu singular, um museu destinado a resgatar a memória daqueles que ousaram oferecer a sua vida para resgatar a liberdade roubada durante 48 anos de repressão e obscurantismo”. (ver texto)
Borges Coelho presta também homenagem ao povo de Peniche lembrando a mulher anónima que, em 1962, na frente dos guardas, lhe pediu um abraço junto à fortaleza quando saía de seis anos e meio de prisão.
Herculana Velez, filha do ex-preso Joaquim Diogo Velez, toma a palavra (ver intervenção). Começa por dizer que “Fomos meninos e meninas. Não nascemos adultos, tonámo-nos adultos em tempo de ser criança”, para contar que, aos 3-4 anos, esteve na clandestinidade com os pais durante quatro anos até os pais serem presos.
A mãe sairia ao fim de um ano e o pai de nove. “Nove anos passados em função desta cadeia, ora a caminhar a fim de visitar o meu pai, ora assistindo às lutas travadas na entrada desta fortaleza pelas companheiras e mães, principalmente, mas também por outros familiares exigindo direitos como saber, por exemplo, porque determinado preso, ou um grupo de presos, não tinha direito a visitas”.
“Se eu tinha medo? Nunca chorei, nunca demonstrei medo, nunca falei. Eu não falava nem para dizer o nome!”, contou Herculana Avilez. “O que me trazia a esta cadeia era o regime fascista, era o governo da ditadura, era a falta de liberdade. A ditadura que alimentava a miséria e a ignorância. E a quem se lhe opunha torturava, prendia e matava. Se esta menina ficou marcada pela vida clandestina, pelos sacrifícios e a luta dos pais resistentes antifascistas, sem dúvida!”.
“Estou hoje aqui mas algumas crianças não puderam aqui chegar, (…) ficaram pelo caminho meninos e meninas quer pela fome ou falta de assistência médica, ficando nas nossas memórias. Presto-lhe a minha mais sentida homenagem”, bem como “a todos os homens e mulheres que abnegada e corajosamente se entregaram à luta contra o fascismo pagando com longos anos de prisão (…)”, disse Herculana Avilez.
“Quero deixar aqui também o meu agradecimento e homenagear o povo de Peniche que, vencendo o medo e ameaças da PIDE, prestou auxílio e uma enorme solidariedade às famílias dos presos políticos em condições económicas mais desfavorecidas, abrindo as portas das suas casas para que nelas pernoitássemos. Eu e a minha mãe ficamos em algumas dessas casas”, revelou.
Depois do secretário-geral da Federação Internacional de Resistentes (FIR), Ulrich Schneider, ter dito algumas palavras, entregou aos resistentes portugueses, na pessoa da directora do museu, Aida Rechena, livros editados pela FIR sobre a resistência antifascista.
A encerrar, José Pedro Soares, lembrou que “há precisamente 50 anos, nas primeiras horas do dia 27 de Abril de 1974, vencidas as resistências de Spínola que não queria a libertação de todos os presos políticos, em Peniche tal como em Caxias, a vontade do povo foi mais forte, as portas destas cadeias finalmente abriram-se para, entre aplausos e vivas à liberdade e ao 25 de Abril, saudar a libertação dos presos políticos do fascismo”.
“Passados 50 anos, aqui estamos, para celebrar a concretização desse apelo, a concretização do direito à memória, para evocar a resistência à opressão, à luta contra a guerra e o colonialismo, pela democracia, pela liberdade, por um mundo mais justo e liberto da exploração, porque foi esse o combate, foram essas as causas porque se bateram os que, entre 1934 e 1974, aqui estiveram encarcerados”.
Depois de relatar os difíceis passos que foram dados para que o museu se tornasse uma realidade, José Pedro Soares quis recordar muitos dos seus obreiros: “Lembramos a Dra. Paula Silva, da Direcção Geral do Património Cultural, sua Directora quando foi tomada a decisão, o Arquitecto João Barros Matos que concebeu o projecto e o plano das obras do museu, a Dra. Teresa Albino, técnica superior, que acompanhou o processo desde a primeira hora, e a Dra. Aida Rechena, directora do museu, cujo empenho, determinação e competência todos lhe reconhecem”.
“Não podendo enumerar todos os que contribuíram para o notável empreendimento, queremos, entretanto, deixar público agradecimento, ao camarada Domingos Abrantes e ao Professor Fernando Rosas, para ambos, o mais elevado apreço pela relevante contribuição no estudo e elaboração de conteúdos para a instalação do Museu Nacional Resistência e Liberdade”, disse a finalizar.
Das cerimónias, para além do descerramento de uma placa comemorativa, constou um concerto pelo grupo “Sopa de Pedra”, e a actuação de Sofia Lisboa que cantou o Fado de Peniche e o Hino de Caxias.